FUTEBOL MINEIRO E AS RIVALIDADES: SUAS RELAÇÕES COM O IMAGINÁRIO POPULAR ATÉ A METADE DO SÉCULO XX
O Atlético é o time das pessoas
1 - Fichamento do livro Quem desloca tem preferência de Marcelino Rodrigues da Silva
SILVA, Marcelino Rodrigues da. Quem desloca tem preferência: ensaios sobre
futebol, jornalismo e literatura. Belo Horizonte: Relicário, 2014.
Diante desse cenário, é necessário perguntar se,
de alguma forma, continuamos ligados aos mitos fundadores do Atlético e da
atleticanidade. Guardará a Massa alguma conexão com a memória e a experiência
dos torcedores mais antigos, como meu pai, que projetaram no futebol as
aspirações e os sofrimentos de sua vida, de sua nação e de sua condição social?
Continua a haver, no imaginário esportivo mineiro, alguma forma de busca por
subjetividade e enraizamento social? Ou se trata apenas da economia simbólica
de uma multidão turbulenta, mas incapaz de se organizar, tendendo, portanto, a
se comportar ora como turba ignara, ora como dócil rebanho? O que pode
representar a rivalidade entre Atlético e Cruzeiro hoje? As perguntas são
importantes porque colocam em questão a própria condição de sujeito político
das massas, diante da falência do pacto social populista no Brasil e da
dinâmica cultural do mundo contemporâneo. p.146
Embora a história dos esportes seja muito longa,
remontando a inúmeros registros arqueológicos de civilizações antigas, suas
formas atuais possuem estreitas ligações com a história da modernidade
ocidental. Muitas das modalidades esportivas que hoje são as mais importantes,
entre elas o futebol, surgiram na Europa ao longo do século XIX, no contexto do
desenvolvimento do capitalismo, do Estado nacional e de uma organização social
predominantemente urbana e industrial. Nesse ambiente, os sports desempenharam uma função eminentemente disciplinar,
semelhante àquela que Foucault identificou em instituições como a fábrica, a
escola e o hospital. p.141-142
Com suas regras bem definidas e sua organização
arborescente (articulando pessoas e grupos em clubes, ligas e competições que
assinalam ao mesmo tempo o conflito e a solidariedade, a semelhança e a
diferença), os esportes modernos reproduziram a organização das relações na
nova sociedade (a divisão do trabalho, a mediação institucional dos conflitos
etc.), contribuindo para sua assimilação pelas multidões. Uma necessidade que
surgiu do declínio das formas tradicionais de pertencimento social, como
centralidade da Igreja, a autoridade divina do monarca, a distribuição feudal
das riquezas e do poder etc. No vácuo dessas ideologias, a mentalidade moderna
teve no esporte um aliado para superar o desenraizamento provocado por esse
declínio e estabelecer formas de comunicação e sociabilidade que dessem
sustentação às novas estruturas políticas, econômicas e sociais.
No Brasil o esporte cumpriu função semelhante,
mas com especificidades importantes em relação ao modelo europeu. O esforço de
reconstruir os laços sociais esgarçados pelo desenraizamento moderno (aqui
intensificado pela brutal urbanização das primeiras décadas do século XX e pela
tardia abolição da escravatura) demandava uma operação de mediação, que ligasse
a mentalidade esportiva à memória e às tradições dos grupos que se amontoavam
nas ruas e cidades. Por isso, a história e o imaginário do futebol no Brasil
estão repletos de conexões com a experiência histórica desses grupos.
Nos primeiros anos do século XX, o esporte era
tão elitista quanto a vida política do país, e havia todo um esforço para
manter à margem dele as classes menos favorecidas social e economicamente. A
história de sua popularização se tornou uma narrativa mítica de como negros e
pobres passaram a ser aceitos na vida esportiva, sofrendo e superando
obstáculos para alcançar o reconhecimento. p.142
[...] Naquele contexto de exacerbação das
tensões sociais, a articulação dos mitos do futebol a partir de dicotomias como
negro x branco, povo x elite e centro x periferia respondia a necessidades
urgentes de comunicação e sociabilidade, que permitissem a mediação e o
convívio entre os diferentes grupos sociais. p.143
O caso do futebol em Belo Horizonte guarda
semelhanças e diferenças em relação ao Rio de Janeiro, que tem sido a matriz da
historiografia do futebol brasileiro. A moda dos sports chegou à cidade praticamente junto com sua fundação, em
1897, e o Atlético surgiu apenas onze anos depois. p.143
Erguida em poucos anos a partir de um pequeno
arraial, Belo Horizonte foi rigorosamente planejada segundo parâmetros
urbanísticos modernos, incorporando uma vocação e um simbolismo de
prosperidade, progresso e espírito republicano. Embora estivesse no centro das
Minas Gerais, com suas montanhas e tradições, a cidade asséptica não guardava
uma memória tão viva e conflituosa das profundas desigualdades da sociedade
brasileira e das revoltas e turbulências que marcaram a história de outros
centros urbanos. p.143
[...] explorei a hipótese de que se tratava,
então, de uma rivalidade construída em torno de duas atualizações diferentes da
idéia do “popular“. Uma baseada no imaginário do trabalho e da perseverança (no
caso do Cruzeiro, com sua história ligada à trajetória dos imigrantes italianos
no Brasil) e outra baseada no imaginário da miscigenação e da mediação entre
grupos e classes sociais (caso do Atlético, clube que nasceu nas elites e se
tornou popular ao admitir jogadores negros e pobres). p.145
Considerando essa configuração, ainda podemos
ver na rivalidade esportiva uma economia simbólica de alguma forma ligada à
história dos clubes e das relações entre os diferentes grupos sociais. No jogo
esportivo e político, não se jogava apenas o conflito entre as elites e o povo,
de certa forma apaziguado pela ideologia populista, mas também a contradição,
constitutiva de nossa identidade, entre duas formas de ser popular. Essa
contradição se reproduzia, por exemplo, nas recorrentes comparações entre
Leônidas da Silva e Domingos da Guia, ou entre Garrincha e Pelé, que
simbolizavam o conflito entre o lúdico e a disciplina, entre o dionisíaco e o
apolíneo, entre a arte e o trabalho etc. Equilibrando-se nesses dois pilares, o
Brasil seria capaz de se impor às outras nações e revelar ao mundo o valor de
suas singularidades. p.145
Mas a bola não parou de girar e os sentidos dos
signos esportivos continuaram se deslocando. A colônia italiana se misturou à
comunidade brasileira e o Cruzeiro abriu suas portas aos que não pertenciam a
ela, aumentando sua torcida no embalo das conquistas dos anos de 1960. O
Atlético consolidou sua imagem de time de massa, reunindo em suas hostes desde
a “cachorrada“ que ocupava as antigas gerais do Mineirão até a torcida
elitizada dos bairros nobres da zona sul de Belo Horizonte. p.145
A
inspiração para a escolha dos bichos vinha, em grande medida, de elementos que
já faziam parte da imagem dos clubes: o Atlético, com sua fama de “bom de
briga“ e seu uniforme preto e branco, que lembrava um galo da raça carijó,
seria o Galo; o Cruzeiro, que costumava ter dirigentes italianos de
incomparável esperteza para os negócios (como Mário Grosso, presidente da
época), seria a Raposa; p.159 (Galuppo, 2003, p.78)
O Atlético, forte desde as primeiras décadas do
século e cada vez mais querido pelos torcedores das classes populares, e o
Cruzeiro, que com sua astúcia e perseverança vinha se tornando cada vez mais
poderoso, já começada a cultivar a rivalidade ritual que dividiria a cidade ao
meio, duas décadas depois. Enquanto isso, o América se encontrava em um lento processo de decadência, que
começou na década de 1930 e se completou apenas nos anos 1960. O combate
fabuloso entre o Galo, que defende bravamente seu terreiro das ameaças
externas, e a Raposa, bicho atilado que busca com astúcia invadir o território
inimigo, foi logo assimilado pelos adeptos de ambos os clubes. Conta-se, por exemplo, que Zé do Monte, ídolo
do Atlético nas décadas de 1940 e 1950, costumava entrar em campo com um galo
debaixo do braço. Em resposta, a torcida cruzeirense prometia soltar uma raposa
em campo. Para caçar o bicho de Zé do Monte. p.160
Metaforizada pela eterna luta dos dois bichos na
disputa pelo terreiro belo-horizontino, a rivalidade ritual entre Atlético e
Cruzeiro parece, então, opor dois conjuntos diferenciados de representações e
valores, por meio dos quais se constroem duas imagens distintas. Se hoje ambos
os clubes reivindicam para si o atributo “popular“, não há dúvidas de que se
trata de duas formas diferentes de ser popular. p.164
Essas
significações reverberam, de forma diluída e disseminada, em inúmeros discursos
da cultura esportiva belo-horizontina. A fundação do Atlético por um grupo de
estudantes de boa família é contada como um momento de rebeldia inconsequente
de garotos que mataram aula para se encontrar no coreto do Parque Municipal. O
ambiente social elitista dos primeiros anos é amenizado pela figura acolhedora
de Dona Alice Neves, mãe de um dos fundadores que acolhia os primeiros
encontros do grupo e é tomada como símbolo de um clube que “soube se abrir para
o mundo“ e “foi generoso com os torcedores que bateram à sua porta“ (Galuppo,
2003, p.41)
No
panteão dos grandes ídolos atleticanos, destacam-se figuras como o humilde e
folclórico Dario Peito de Aço e o negro Ubaldo (clique para saber mais), que fazia “gols espíritas“ na
década de 1950 e foi carregado pela massa do estádio Independência até o centro
da cidade após um jogo em 1955. Mediação social e potencial de conflito se
fundem na mitologia do Galo de uma forma semelhante à que, dentro de certa
tradição cultural, tem sido identificada como característica definidora da
identidade nacional brasileira. p.164

No final dos anos 20 a presença de dirigentes e jogadores, como o craque Said, evidenciaria a participação importante dos imigrantes de origem árabe dentro do clube. p.114
Do outro lado da fronteira simbólica que divide
a cidade ao meio, na galeria de heróis cruzeirenses, os craques do gramado
(muitos deles de origem italiana) dividem as glórias com dirigentes quase tão
celebrados quanto os próprios jogadores. p.164
[...] Seria possível dizer que essas duas
narrativas de tradição clubística se assemelham na ambiguidade, oferecendo à
sociedade duas alternativas para a solução simbólica do conflito entre o povo e as elites,
necessária ao processo de modernização: a ideologia populista da mediação e do
pacto social, investida no Atlético, e a ideologia liberal-capitalista da
ascensão pelo trabalho, encarnada no Cruzeiro. P.166
Tornados populares, os dois clubes mantêm uma
relação espetacular. O Atlético inveja e busca a racionalidade cruzeirense,
enquanto o Cruzeiro tem ciúmes da paixão e da fidelidade da torcida atleticana.
p.166
Nos anos 1940 e 1950, o Atlético se manteve
sempre no primeiro plano, enquanto o América continuava em lenta decadência e o
Cruzeiro em progressiva ascendência.
Foi apenas na década de 1960 que o Cruzeiro
passou a ser amplamente considerado como o principal rival do Atlético,
conquistando títulos importantes e ampliando sua torcida graças a um time
sensacional. p.162
A escolha da Raposa como símbolo do Cruzeiro,
por sua vez, fazia referencia à trajetória de muitos dos membros da colônia
italiana em Belo Horizonte, cuja astúcia para os negócios possibilitou a
ascensão às camadas privilegiadas da população da cidade. Ao lado dessa
astúcia, que emula uma racionalidade prática típica do capitalismo, o trabalho
e a perseverança também marcaram a trajetória daqueles imigrantes e compõem o
cerne da mitologia do clube. p.163
Foi nesse contexto que surgiu o Società Sportiva
Palestra Italia, clube que congregava os membros da numerosa colônia italiana
de Belo Horizonte, formada com a importação de mão de obra estrangeira na época
da construção da cidade. Os italianos e seus descendentes eram, em sua maioria,
comerciantes, artesãos, trabalhadores da construção civil e operários, embora
alguns empresários e industriais da mesma origem também tivessem se
estabelecido na cidade. Com a ajuda das famílias italianas mais ricas e a
incorporação de alguns jogadores que atuavam no Yale, o clube se formou,
motivado pelo desejo de representação e integração dos membros da colônia
italiana. p.106
Na década posterior, aconteceu no Brasil o
processo de profissionalização do futebol, consequência das tensões provocadas por
sua disseminação entre as diferentes classes e grupos sociais. Enquanto os
defensores do amadorismo tentavam preservar o caráter elitista do esporte, os
adeptos do regime profissional optavam por aderir às transformações motivadas
pela popularização. p.106
As consequências desse processo se fizeram presentes
no universo esportivo, com uma significativa mudança no perfil sociocultural
das torcidas. O Atlético reforçou sua escolha por uma imagem popular [...] [Na
década de 1940, essa imagem do Atlético como um clube popular já estava
consolidada, como mostra uma matéria publicada pelo O Diário Esportivo em 2 de
agosto de 1945: “O Atlético é o preferido pelas grandes massas do nosso
futebol. Grêmio de ricas tradições esportivas, ‘campeão dos campeões‘, ele
arrasta para os nossos pobres estádios verdadeiras multidões, sedentas de
emoções, loucas para delirar com as jogadas de seus prediletos. Os proletários
em geral são todos atleticanos. Homens que vivem do labor cotidiano, e no
descanso domingueiro vão para os nossos campos dar alegria e incentivo ao nosso
esporte“] p.108
A rivalidade entre Atlético e Cruzeiro, enfim,
não surgiu de modo repentino, mas foi lentamente formada por meio de
progressivos deslocamentos, que ampliaram o perfil sociocultural das torcidas e
deram aos dois clubes uma identidade eminentemente popular. p.109
Os rojões preparados para uma vitória que não chegou hoje poderão sempre ser utilizados na derrota do rival amanhã. P.167
Em inúmeras oportunidades a fama de aguerrido e
vingador tem sido lembrada para evocar uma capacidade especial de superação nos
momentos mais difíceis. Essa idéia reverbera, por exemplo, na célebre máxima do
escritor Roberto Drummond, torcedor do Atlético e cronista esportivo entre
meados dos anos de 1960 e início de anos 2000: “se houver uma camisa branca e
preta pendurada no varal durante uma tempestade, o atleticano torce contra o
vento“ (Drummond, 2007, p. 166). Com a definitiva incorporação da imagem de
popular pelo clube, o signo da raça acabou adquirindo certa ambiguidade,
remetendo também à forte presença de negros e mulatos no time e na torcida
atleticana. p.113
É interessante observar que dois momentos
especialmente significativos da história do clube, marcos decisivos na
superação da condição de “time de colônia“, recebem nesses e em outros textos
um tratamento visivelmente tímido. A abertura para jogadores que não pertenciam
à colônia italiana, somente em 1925, e a troca de nome de Palestra para
Cruzeiro, em 1942, são relegadas a um segundo plano, aparecendo apenas em
rápidas menções que não escondem certo desconforto. A exceção fica por conta do livro de Plínio Barreto e Luiz
Otávio Trópia Barreto, que dedica duas páginas ao episódio da mudança de nome,
contra italianos, na época da Segunda Guerra Mundial [...] p.117
No
início de 1942, um decreto-lei do governo federal estabeleceu a nacionalização
dos nomes, e o Palestra trocou o Itália por Mineiro. (...) com a declaração de
guerra à Alemanha, à Itália e ao Japão, o debate interno tomou conta do Barro
Preto. Era necessário nacionalizar ainda mais o nome do clube. [...] Sem
consultar o Conselho Deliberativo, o presidente Enne Cyro Poni adotou o nome
Ypiranga Esporte Clube, em homenagem à data máxima brasileira. Uma derrota para
o Atlético por 2 a 1 foi definitiva para condenar a existência do Ypiranga.
(...) O presidente do Conselho, Oswaldo Pinto Coelho, sugeriu o nome Cruzeiro
Esporte Clube. Era uma homenagem ao principal símbolo do país. (Barreto &
Barreto, 2000, p.72-73) p.118
No livro de Galuppo, a história da fundação do
Atlético é recheada com informações pitorescas sobre o cotidiano daquele grupo
de garotos, como o mutirão para limpar o terreno do primeiro campo, o modo como
foram conseguidas as primeiras bolas e o apoio que recebiam da mãe de um dos
fundadores, Dona Alice Neves, que costurava os uniformes, oferecia sua casa
para reuniões e liderava a torcida feminina: “Foi, sem dúvida, o primeiro
exemplo de espírito atleticano na história”
Com sua mitologia de raça e paixão, o Atlético
parece reafirmar as singularidades de um povo passional, intuitivo e sofredor,
simbolizando as energias incontroláveis da multidão heterogênea e sua
capacidade de se opor à modernização ou assimilá-la de forma diferencial. O
Cruzeiro, por sua vez, parece reforçar o vetor desse processo, por meio de uma
narrativa que remete à ação dos próprios europeus como agentes modernizantes e
reitera valores fundamentais da modernidade ocidental, como trabalho e
perseverança, astúcia e racionalidade.
De um modo enviesado essas duas imagens se
apoiam na oposição entre modernidade e tradição para oferecer à comunidade duas
alternativas de solução simbólica do conflito entre povo e as elites: a
ideologia populista da mediação e do pacto social, investida do Atlético, e a
ideologia liberal e racionalista da ascensão pelo trabalho, encarnada pelo
Cruzeiro. p. 121-122
Como disse anteriormente, não é
fácil localizar nessa trajetória os fatos e motivações que deram origem aos
fortes sentimentos revanchistas que hoje opõem os membros das duas hostes. Mais
difícil ainda é interpretar essa história e extrair dela os significados e as
relações afetivas que a sociedade projeta nos dois clubes e em sua rivalidade.
O protagonismo esportivo das duas instituições certamente é o responsável por
elas serem as preferidas do público, mas de modo algum é capaz de explicar as
configurações que essas paixões assumiram na vida esportiva mineira. Assumindo
meu movimento apenas como um primeiro esforço nesse sentido, tento neste
trabalho propor uma primeira resposta a essas questões. Para isso recorro a
dois livros lançados recentemente pela editora DBA, como parte da coleção
“Camisa 13”, sobre os grandes clubes brasileiros. Os livros são Raça e Amor: a saga do Clube
Atlético Mineiro vista da arquibancada, de Ricardo Galuppo, e Páginas Heróicas, onde a imagem do
Cruzeiro resplandece, de Jorge Santana. Somados a alguns pouquíssimos
outros, esses dois livros são parte importante da limitadíssima bibliografia
sobre a história do futebol mineiro.
Sobre esses dois volumes, é
necessário dizer, antes de tudo, que não são textos construídos segundo os rigores
do trabalho acadêmico. Ao contrário, são relatos que, embora baseados sobre um
elogiável trabalho de pesquisa, transitam do registro jornalístico ao libelo
apaixonado, já que, no espírito da coleção, ambos foram feitos por autores que
não escondem sua condição de torcedores fiéis dos clubes sobre os quais
escreveram. Longe de ser um inconveniente para os objetivos deste trabalho,
essa característica faz com que os dois livros sejam, na verdade, legítimas
expressões do imaginário, das tradições e da rivalidade que cerca os dois
clubes.
Em ambos os textos, os sentimentos revanchistas
entre atleticanos e cruzeirenses aparecem a todo momento. Os dois autores
adotam, inclusive, certas formulas verbais para se referir ao rival,
manifestando através delas a importância que esses sentimentos possuem na
definição de sua própria identidade. O atleticano Ricardo Galuppo evita durante
todo o texto usar a palavra “Cruzeiro”, referindo-se ao clube como “aquele time
do Barro Preto”, “o ex-Yale”, o “ex-Palestra”, “a turma do Barro Preto” etc.
Nas primeiras páginas do livro, o autor já avisa: “Em respeito à família
atleticana, certas palavras não serão mencionadas neste texto, nem mesmo como
referência a uma antiga moeda nacional – que saiu de circulação sem deixar saudade.”
(GALUPPO, 2003: 21). Já o cruzeirense Jorge Santana, se não se nega a escrever
o nome do rival, reserva sempre a ele algum comentário ou epíteto irônico ou
depreciativo, como “galeto com polenta” e “os empedernidos secadores da
vizinhança” (SANTANA, 2003: 15, 21). Assim, os dois autores já mostram o quanto
a presença constante e ameaçadora do outro é vital para suas próprias
identidades de torcedores, mesmo que esse outro seja seu semelhante e seu
vizinho mais próximo, ou talvez exatamente por isso. Mas é quando buscam
definir o que é ser torcedor de seu clube, descrevendo suas origens e seus
vínculos com a sociedade, que os autores dão as pistas mais interessantes sobre
os significados da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro.
Na mística que cerca o Atlético,
podemos certamente encontrar muitos dos elementos através dos quais se definiu,
em âmbito nacional, uma certa imagem do “povo brasileiro”. Como uma agremiação
eminentemente popular, o Atlético é o clube do “povão”, o clube da “massa”, dos
pobres, dos negros e dos mestiços. Isso é perceptível, por exemplo, no verso do
hino do clube utilizado para nomear o livro de Ricardo Galuppo (“lutamos com
muita raça e amor”), em que a palavra raça ecoa não apenas o espírito aguerrido
do esportista, mas também a presença do negro no esporte e os sofrimentos a que
ele foi submetido em razão dos conflitos raciais. No livro de Ricardo Galuppo,
esse sentimento está presente, por exemplo, na narrativa da ascensão de Ubaldo,
um “menino fujão”, um “negro de corpo roliço” famoso por seus “gols espíritas”,
que foi um grande ídolo do time na década de 1950:
Foi naquele ano que a torcida começou a saudar Ubaldo com uma
música especial. Sucesso do carnaval de 1955, a marcha “Tem nego bebo aí”, de
Mirabeau e Ayrton Amorim, era tocada em todo o país. Dali em diante, sempre que
o centroavante do Atlético entrava em campo, a massa cantava: “Tem nego Ubaldo
aí! Tem nego Ubaldo aí!” O artilheiro teve o passe vendido ao Bangu no final
daquele ano e voltou pouco tempo depois, em 1958, quando recebeu da torcida uma
das maiores homenagens já prestadas a um jogador de futebol.
Num jogo contra o Ex, realizado em 7 de dezembro de 1958, Ubaldo
fez um de seus gols inexplicáveis. A torcida invadiu o gramado, carregou seu
ídolo e ganhou as ruas. O desfile seguiu pela avenida Silviano Brandão, subiu
em direção à Floresta, passou pela praça da Estação e, sempre ao som de “Tem
nego Ubaldo aí!”, foi parar na praça Sete, no coração de Belo Horizonte. Ubaldo
jamais se referiu àquele fato com modéstia. “Naquele tempo, só duas pessoas
eram carregadas nos ombros do povo. O presidente Juscelino Kubitschek e eu.”
Orgulho legítimo de quem foi protagonista de uma cena extraordinária. (GALUPPO,
2003: 94)
“Raça e amor”, independente da
classe social ou da cor da pele: “O povo alvinegro é assim – passional, fiel,
generoso. (...) Nosso time não tem simpatizantes. Tem torcedores apaixonados.
Quem ama o Galo se considera o ser mais atleticano do mundo.” (GALUPPO, 2003:
20). A esse deslocamento, pode ser relacionada uma outra característica,
associada freqüentemente por Galuppo ao Atlético e sua torcida: a
heterogeneidade – seja ela social, profissional ou racial. Ecoando as palavras
do autor, José Eustáquio de Oliveira afirma, na orelha do livro:
Ser atleticano é ser intrépido, gentil, solidário, engraçado,
triste, alegre, mal-humorado, gozador, inteiro, estilhaçado, criança, adulto,
esclerosado, homem, mulher, pobre, rico, remediado. Pai-de-santo, pastor, ateu
e até cardeal. Moreno, louro, vermelho, amarelo. É preto e branco!
Mais do que um clube dos pobres,
portanto, o Atlético é um clube “da massa”. Esse conceito deve ser tomado,
aqui, de modo teoricamente mais rigoroso. A massa é aquela entidade em que toda
a sociedade urbana e moderna se une, tornando-se um aglomerado heterogêneo,
gelatinoso e altamente inflamável, que tanto pode ser conduzido como um gentil
rebanho quanto pode explodir em revoltas sangrentas e incontroláveis. Mas é
também o lugar onde as classes e as raças se encontram, para produzir o
fenômeno da mestiçagem étnica e cultural, do qual surgiu a imagem do Brasil e
do brasileiro que durante o século XX dominou o imaginário de nossa sociedade.
A essas conotações associadas ao
Atlético podem ser opostas determinadas características da representação da
idéia do “popular” que se faz através da mitologia cruzeirense. Se a torcida do
Atlético é apaixonada, a do Cruzeiro é exigente, ranzinza, acostumada a cobrar
o desempenho de seu time. Pois, embora os cruzeirenses também não se cansem de
declarar seu amor pelo clube, o que os distingue não é a atitude passional. À
possessão da “Galoucura”, o Cruzeiro opõe a organização e a diligência de sua
“Máfia Azul”. Nascido no interior de uma colônia de imigrantes, o Cruzeiro
parece se definir sobretudo por aquilo que possibilitou aos italianos sua
inserção na sociedade brasileira: o trabalho árduo e incansável, por meio do
qual se pode construir lentamente um futuro bem sucedido. É o que se vê, por
exemplo, nos seguintes trechos da narrativa de Jorge Santana sobre as origens e
o desenvolvimento do tal “clube do Barro Preto”:
O Palestra mineiro foi criado por trabalhadores e recebeu a adesão
dos comerciantes e industriais, todos italianos. Era uma cosa nostra, fechada às demais
colônias e ao restante da população. Os italianos pobres queriam um clube para
integração social, lazer e cultura física e os ricos, um cartão de visitas para
exibir à elite da capital. O Palestra, assim como a Beneficência Italiana,
deveria espelhar a capacidade de realização que levara tantos deles ao sucesso.
(SANTANA, 2003: 30)
E mais à frente:
É aí que se inicia a saga do Cruzeiro Esporte Clube, o qual, nas
palavras de Luiz Carlos Rodrigues, “se fez grande sem lances de heroísmo pungentes
e sem heróis miraculosos, cuja grandeza foi plasmada no cotidiano, na
simplicidade de um trabalho constante e reiterado, quase anônimo, cuja
somatória, ao correr do tempo, conferiu a dimensão grandiosa, internacional,
universal, de um dos maiores clubes do mundo! (SANTANA, 2003: 32)
Vemos, então, que Atlético e
Cruzeiro, com suas origens, suas tradições e seus mitos particulares,
representam duas imagens bem diferentes da idéia do “popular”. Se buscarmos por
relações entre essas representações e certos elementos do contexto em que elas
foram produzidas, como os processos de modernização da sociedade brasileira e
construção da identidade nacional, veremos que elas desempenham também papéis
bastante diferentes, e talvez complementares. Na mitologia do Atlético podemos
identificar o esforço da mediação, do encontro entre as classes e grupos
sociais, para o qual foi necessário estabelecer conexões com a memória e a
cultura dos menos favorecidos, por exemplo, através da escolha da “raça” como
valor primordial. Já no imaginário cruzeirense, parece predominar sobretudo a
idéia do “trabalho”, tomada como valor fundante da vida esportiva e caminho
para a prosperidade, no futebol e fora dele. Enquanto o Atlético, miscigenado e
contaminado, reafirma a diferença do brasileiro passional, intuitivo e
sofredor, que de algum modo perturba o processo de modernização, o Cruzeiro
reforça o vetor desse processo, fincando suas raízes na ação dos próprios
europeus como agentes modernizantes e estabelecendo como seu valor primordial o
próprio fundamento do sistema capitalista.
De um certo modo, essa opção interpretativa mais
radical nos lembra que, mesmo se estiver fundamentada na experiência dos grupos
sociais que se envolveram com os clubes ao longo de sua história, qualquer
interpretação da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro terá algo de abusivo e
suplementar. As histórias do futebol e da vida são sempre mais complexas que os
mitos identitários e as construções historiográficas. É preciso reconhecer que
tende para o esquematismo qualquer tentativa de “explicar“ o universo
futebolístico por meio do enquadramento, da classificação e da oposição clara e
coerente dos signos esportivos. Porque o futebol, como esporte, espetáculo e
universo comunicacional, extrai sua eficácia justamente da capacidade de
produzir narrativas que se cruzam, diversificam e desdobram, ao sabor das
circunstâncias e das posições enunciativas. [...] De qualquer modo, as tensões
e os antagonismos sociais estarão sempre presentes, estabelecendo configurações
que desafiam a interpretação. p.167-168
2 - A INVENÇÃO DO TORCER
EM BELLO HORIZONTE: Da Assistência ao Pertencimento Clubístico (1904-1930) de
GEORGINO JORGE DE SOUZA NETO
SOUZA NETO, Georgino Jorge de. A invenção do torcer em Bello Horizonte: da assistência ao pertencimento clubístico (1904-1930). 2010.
O trecho da nota escrita por “Carpas”,
articulista esportivo do Correio Mineiro,
atentava para a possibilidade de declínio
do clube decacampeão da cidade. A perda do título do campeonato de 1926 para o
Atlético e o franco desenvolvimento do Palestra faziam acender a preocupação
dos muitos simpatizantes do vitorioso alvi-verde. A segunda metade da década de
1920 é indicadora de uma profunda mudança no futebol em Belo Horizonte. A quebra
da hegemonia americana representava apenas um dos vários elementos que
emergiramneste período. À reboque destas
transformações, obviamente, estavam os sentidos e significados atribuídos ao torcer, mais
intenso e abrangente que os anos anteriores.
Mais do que propriamente uma modificação
nos modos de “torcer”, os novos
comportamentos e situações registravam
uma hipertrofia daquilo que havia sido construído
pelo que se convencionou chamar de
torcida. A idéia de espetáculo e diversão, a participação
da mulher, os sururus e a própria noção
de pertencimento e paixão clubística são alçados a
uma dimensão inimaginavelmente grandiosa.
O bicampeonato de 1926-1927 do Athletico,
e a conquista dos títulos de 1928-1929 pelo clube italiano revelavam uma
nova composição de forças rivais e acentuava adisputa entre ambos. Se a primeira metade
da década de 1920 assistiu à consolidação doacirramento entre America e Athletico, a
outra metade celebrou a construção de umarivalidade que se tornaria histórica. Os
jornais da época regurgitavam de notícias sobre este confronto, e anunciavam a intensa movimentação
na cidade, em instantes que precediam o esperado embate. Uma das formas mais
explícitas de paixão entre os clubes estava no ato de apostar. E apostar começava a fazer parte
da rotina dos jogos de futebol em Belo Horizonte, principalmente quando os grandes se
enfrentavam. A partida entre o Palestra Itália e o Athletico Mineiro, em junho de 1930, exemplificava
este estado de coisas, como na descrição do anúncio do jogo pela seção esportiva
do Minas Geraes, que trazia:
Sim, é hoje. Data historica. O maior dia
deste anno. Gente vibrando de enthusiasmopuro. E outros misturando enthusiasmo com
ambição. Grandes apostas no Athleticoe no Palestra. Segunda-feira, novos
ricos. E sujeitos tristes, exactamente comoaquelles que gastam tudo no Carnaval.
Shoot valendo dinheiro. Apostas de contosde réis. Mas si o jogador fôr
profissional, campanha contra elle. Que importa! Sãoos apostadores que animam o jogo com as
brigas.154
Fazia-se de tudo na torcida pelo time
predileto, ainda mais quando esta “torcida”
valia alguns milhares de réis. Estar
presente em campo, gritando e vibrando (ou brigando,
como indicava a nota acima) com o
desenrolar do jogo, nem sempre era suficiente para
garantir a conquista da vitória. Os casos
de “ajuda espiritual” surgiam como recurso de
incentivo, principalmente quando as
apostas em dinheiro se associavam ao torcer. O periódico
Goal apresentava uma matéria intitulada
“Macumba”, que bem ilustrava a situação apontada.
Nela, o texto traz à tona reveladores e
importantes hábitos constituídos pelos torcedores, nos
anos finais da década de 1920:
Os torcedores do Palestra e do Athletico
fizeram apostas a semana inteira. Dentro
dos cafés, muita gente sonhou com a
victoria do club e com melhores planos de
restauração financeira. Essa grande
agitação foi principalmente notada pelas
agencias de loterias, prejudicadas com o
grande interesse despertado pelo jogo de
domingo. Ganhar dinheiro torcendo, é
muito mais agradavel do que esperar que as
bolinhas cahiam com o numero. A semana
foi péssima para os cambistas. [...]
Emquanto o pessoal casava os cobres aqui
na Avenida, Braulino, o mais inspirado e
subtil dos apostadores, embarcou para
Matheus Leme. Queria que um velho
feiticeiro garantisse a victoria que
elle, cheio de enthusiasmo, já desejára ao
Athletico, apostando nelle mais de
quinhentos mil réis. E Braulino ouviu
surprehendido, esta resposta:
- Ê moço, ocê veio tarde. Já teve aqui o
sr. Hugo Savassi, que me pediu p’ra pôr ospausinhos p’ro Palestra ganhá.
A verdade é que, na disputa entre
Braulino e Hugo Savassi, o palestrino
comemorou a vitória do seu time com
alguns tostões a mais no bolso. Obviamente, a
influência do “velho feiticeiro” no
placar do jogo (o Palestra venceu por dois a um), não pode
ser aqui apontada como determinante no
resultado, mas certamente muitos torcedores
viajaram a cidade de Matheus Leme em
partidas posteriores.
A crônica desta partida no Minas Geraes é
a narração precisa do movimento
estabelecido pelo torcer na Capital
mineira, e indica elementos fundamentais para a
compreensão do lugar ocupado pelo futebol
e pelas torcidas na cidade. Nela, o cronista vai da
expectativa que antecede o jogo à
frustração e alegria dos torcedores. Sobre os momentos que
antecediam ao confronto, o texto
descrevia:
Quasi que não havia missa das dez. O povo
tinha pressa de ver si o Athletico,naquelle dia bellissimo de ante-hontem,
conseguiria desfazer a influencia da suafalta de sorte tradicional. Os
retardatarios sahiram da egreja ás onze horas ecorreram para o campo. As archibancadas
já estavam cheias. Cedo ainda, havíamosassistido os preparativos da commissão de
Finanças do Athletico, dirigida porFabio Brant. O thesoureiro escalava os
auxiliares, distribuindo malas, que empoucos instantes se encheram
assombrosamente com os cobres daquella torcidaapressada. Vinte mil pessoas. Ninguem
contou. Mas toda a gente calculava assim.E o proprio Mario de Castro, que é
espírito observador, tambem affirmava: - Euprevia esta assistencia. Eu sabia que
hoje isto ia ficar assim. Alda e Natividade, semtempo de almoçar, comiam biscoitos, com
uma naturalidade que já estavachamando a attenção de todos. Benedicto,
da Imprensa Official, estava firme nomeio de umas athleticanas bonitas, que
elle descobriu e conquistou no Barro Preto.Já não havia logares. Tudo apertado. Por
isto, houve indignação quando umamulher enorme, typo Studebacker, foi
pedindo licença e derrubando gente nocaminho. A hora do jogo veiu, poderosa,
destruindo todas as attenções dispersas.Fazendo esquecer as contrariedades da
vida. Approximação da hora tragica.Comparações passadistas dos minutos que
são eternidade. Arrepios no corpo.Physionomias mostrando a inquietação
interior. Nervos, fios encobertos deelectricidade (nós andavamos doidos para
escrever isto). Ansiedade de sujeitosmalucos que fizeram apostas.156
Como não há uma estatística oficial de
público para esta partida, os vinte mil
presentes poderiam representar um exagero
entusiástico do cronista, mas apontava para uma
quantidade considerável de pessoas na
assistência do jogo. Para se ter uma idéia, praticamente
20% da população da cidade estaria
presente ao campo. Para efeito de comparação
(guardando todas as variáveis
anacrônicas), é como se em um confronto entre as duas equipes
hoje, comparecessem cerca de 500.000
espectadores, ou ainda em torno de seis mineirões
completamente tomados. Embora a
quantidade seja um parâmetro importante, os
comportamentos do público também
instigavam apontamentos significativos. À parte a espera
e a expectativa relatada na crônica, o
desdobramento do confronto mostrava as plurais reações
dos torcedores. Em uma outra parte, a
narrativa seguia afirmando:
O jogo Palestra e Athletico é o que
consegue reunir em campo o maior numero depessoas. E o de ante-hontem até fez com
que Bello Horizonte visse carasinteiramente desconhecidas, de velhos e
modestos italianos, que vivem retrahidosno trabalho. Alguns nem sabiam torcer.
Mas, por instincto, dahi a pouco ellestambem acertavam e se entendiam em
lamentações, si o Palestra shootava por cima:- Per la madona. Impossibile. [...] Chico
Velloso foi notavel nas cabeçadas. JoséAlexandre defendeu penalty. Foi mesmo o
segundo team que começou aenrouquecer a torcida do Athletico, a
maior da cidade. O Palestra tinha um terço daassistencia. E o jogo do Palestra, embora
compromettido pela brutalidade, mostrouo valor do seu segundo team, digno do
enthusiasmo da sua torcida. [...] O Palestra foi inventado em Bello Horizonte para
vencer o Athletico. E o Athletico foifundado para vencer cariocas e paulistas.
Compensações. O privilegio de doisclubs. Quando Mario de Castro ia bater o
penalty, uma athleticana bonita, do grupodas meninas do Benedicto, ficou afflicta:
- Elle acerta. Deus é grande! - Sim,respondeu outra moça, branca como um
bilhete de loteria. Deus é grande, mas o“goal” é muito menor. E Mario de Castro
shootou por cima. Arthur Martini, umrapaz que ganhou dez contos de réis nas
apostas de ante-hontem, falava em defesado Palestra: - Mêdo nós não temos. [...]
E agora nada mais de football. Esse jogo dedomingo está continuando feroz na
Avenida, no Iris e no Excelsior. Vocês viramaquella bola que passou por cima? E
aquella outra, muito differente, que passou porbaixo? O Palestra póde recordar o jogo,
porque venceu. Mas o Athletico deveesquecel-o, exactamente porque reconhece
a sua derrota.157
Nas palavras do jornalista que cobrira a
partida, o confronto entre Palestra e
Atlético seria aquele com maior
capacidade de atração do público. As campanhas vitoriosas
nos últimos anos da década e a
popularização dos clubes ajudaram a forjar o início daquela
que seria a maior rivalidade no Estado,
bem como das maiores torcidas. Ao final da nota, a
referência à continuação da partida no
decorrer da semana, em pontos de convívio público da
cidade, indicava o quão intenso o
confronto se desenhara no espaço das práticas dos
habitantes/torcedores.
O tom de algumas crônicas narrativas nas
partidas entre o Atlético e o Palestra
parecia prever o desdobramento futuro
dessa rivalidade. Em um confronto entre estas duas
equipes, ocorrido no dia 09 de junho de
1929, a descrição das sensações despertadas ante o
embate dos clubes denunciava o advento de
uma nova e intensa emulação:
O domingo sportivo despovoou muito centro
o centro da cidade. Bello Horizonteficou sendo o campo do Athletico. Ao
meio-dia, a multidão da torcida começou amovimentar-se. Automoveis cheios. Omnibus
andando pesadamente. Subindo omorro, grandes grupos de gente apressada
davam a idéia de uma emigração penosa.Quando, afinal, chegavam as proximidades
do “stadium”, todos precipitavam-se naconquista de um logar. Nas archibancadas,
quasi cheias, os espaços iamdesapparecendo. Moças. Senhoras. Familias
inteiras, puxadas por homens queabriam caminho, ás vezes sem pedir
licença. Espectadores calmos, com a mania daestatística, fazendo cálculos. 15.000...
18.000... - De um lado da archibancada atorcida do Athletico, a maior da cidade.
Do outro, a do Palestra. Na geral e em todaa parte, ainda a torcida do Athletico,
prolongando-se até fóra do campo. Vibraçãoem todos os grupos. Previsões
exaggeradas. Palpites. Curiosidade de saber o nomedo juiz. E os retardatarios entrando,
incommodando. Pedidos de desculpa. Revoltasintimas. Murmurações sobre a delicadeza e
a sua necessidade. – [...] As torcidasentreolham-se. Palestra! Athletico! [...]
Começa então a verdadeira ansiedade. Asemoções consideráveis e definitivas. Os
athleticanos, já triumphantes, esperando avictoria nova. Os palestrinos mexendo no
arquivo dos campeonatos. Gritandoresultados antigos de outros jogos. E o
“stadium”, enorme, cheio, lembrando o jogodo Corinthians. Os athleticanos
confiantes. [...] Poucos minutos para terminar.Palestra, três goals. Athletico, um. A
archibancada começa a esvaziar-se. Algumasbrigas de torcedores. Murros e confusão.
É quase noite. Os palestrinos ficam até ofim. E a torcida do Athletico retira-se,
convencida da magnifica victoria dosjogadores de camisa verde.158
Se antes o futebol despertava o interesse
de uma reduzida classe de pessoas, a dos
desportistas convictos, a segunda metade
da década de 1920 revelava a grandiosa apropriação
do universo futebolístico em Belo
Horizonte, com dezenas de milhares de indivíduos ligados
à rotina dos jogos e campeonatos
ocorridos na cidade. Por toda a parte podia-se ouvir alguém
se declarando adepto de uma ou outra
agremiação esportiva, notadamente dos clubes de
futebol. Tanta gente envolvida fazia
crescer também os incidentes, um eufemismo muito
utilizado pela imprensa local para
designar as brigas ou sururus, naquele instante algo
praticamente inerente às partidas. O
aumento da paixão elevava a rivalidade, e por
conseqüência, os conflitos.
A inauguração do estádio Antônio Carlos, com a realização da partida entre o
Atlético e o Corinthians, era de fato tão significativo para a cidade, que o próprio comércio local
indicava, na sua postura, tal condição:
CASAS COMERCIAES QUE FECHAM HOJE - Para
que os seus empregadospossam assistir ao grande embate entre o
Athletico e o Corinthians Paulista, ficarãofechadas hoje as seguintes casas
commerciaes da nossa praça: Casa Conto, CasaHermany, Joalheria Padua, Sapataria
Central, Oliveira, Costa & Comp., JoalheriaDiamantina, Marcello de Oliveira &
Souza, Casa Caldeira, Casa Machado Coelho,Casa Ferreira, Parc Royal, Casa
Guanabara, Casa Para Todos, Casa Teixeira NevesFilho, Casa Antonio d’Almeida, Casa Crystal,
Casa Selecta, Casa Oscar Marques,Casa Omega, A’ Sedan, Casa Saliba, Casa
Royal Stores, A’ Auxiliadora e PapelariaBrasil.
Poucas situações teriam força suficiente
para paralisar boa parte do comércio. O
futebol e as suas representações
simbólicas impactavam a cidade com uma intensidade não
percebida (ou não possível) em outras
práticas sociais. A foto da inauguração do campo
atleticano (foto abaixo), diz muito do espaço
ocupado pelo esporte bretão em Belo Horizonte,
naquele instante.

A inauguração hontem realizada, com o
maior brilho e enthusiasmo, do grande eimponente “stadium” “Presidente Antonio
Carlos”, do Club Athletico Mineiro, foium acontecimento que ficará memorável nos
annaes desportivos do nosso Estado.Pouco antes das 15 horas, partiam do
Palacio da Liberdade para alli os automoveisconduzindo o sr. presidente Antonio
Carlos, acompanhado de sua filha LuizitaAndrada e do assistente militar da
Presidencia, commandante Oscar Paschoal, e ossenhores dr. Francisco Campos, secretario
do Interior; dr. Bias Fortes, secretario daSegurança e Assistencia Publica, e seu
assistente militar, major J. Gabriel Marques;dr. Gudesteu Pires, secretario das
Finanças; dr. Djalma Pinheiro Chagas, secretarioda Agricultura; dr. Christiano Machado,
prefeito da Capital, e dr. Abílio Machado,director da Imprensa Official. No portão
central do novo “stadium”, a directoria doAthletico Mineiro aguardava o chefe do
governo, que foi conduzido, com seusauxiliares, ao camarote de honra, debaixo
de um longo e demorado estuar depalmas e acclamações de mais de trinta
mil pessoas, que enchiam todas asarchibancadas e se agglomeravam nas
elevações vizinhas. O aspecto do “stadium”,occupado por uma multidão de
espectadores, entre ao quaes se viam innumerassenhoras e senhorinhas do nosso escól
social, era de empolgante effeito ecommunicativo enthusiasmo. [...].
Seguiu-se a inauguração do “ground” pelamadrinha do novo “stadium”, menina
Luizita Andrada, filha do sr. presidenteAntonio Carlos, a qual procedeu ao
baptismo do campo com “champagne”, deaccordo com as praxes sportivas, o que
fez por entre palma e vivas da multidão.[...]. Desde que vimos acompanhando o
desenvolvimento da cultura physica dosfilhos de nossa terra, sentimos que um
verdadeiro deslumbramento, um impulsoestupendo de enthusiasmo domina e impera
em todos os corações da gente mineira.Apreciado, a principio, por pequeno
circulo de elementos da sociedade, cultivadopor reduzido grupo de adeptos, foi
gigantesco e rapido o movimento progressivo dosport em Minas, movimento este que se
operou em todas as classes sociaes,arrastando dezenas de milhares de pessoas
aos campos da lucta, no anseio louvavelde applaudir e incitar os seus
affeiçoados nos jogos sportivos. E a prova disso, deunoshontem o Club Athletico Mineiro, com o
soberbo espectaculo, jamais visto emtodos os tempos em nossa Capital, da
inauguração do seu excellente “stadium”,obra que attesta o esforço e o
enthusiasmo dos pioneiros do athletismo. [...] E nãoforam só as 30.000 vozes da assistencia,
que enchia as archibancadas athleticanas,que ovacionaram a turma alvi-negra,
gloriosa de tão renhido prelio, mas toda aMinas Geraes, em todos os rincões do
nosso sertão, em todo o paiz onde o mineirose encontra, vozes e palmas coroaram o
esforço e o denodo dos “sportmen”bellorizontinos, que, numa arrancada
magnifica souberam collocar o seu estadoelevado em que se encontram as suas
co-irmãs da Federação. Minas está deparabéns!172
Receber cerca de 30% da população da
cidade em um único evento esportivo
mostrava a dimensão que o futebol tomara
em Belo Horizonte, trazendo a reboque a
(re)construção de vivências que se
situavam em sua órbita. Dentre elas, uma das mais
importantes residia no hábito de torcer,
a esta altura algo já sedimentado na Capital mineira.
Torcer à noite já era possível, e as torres de iluminação representavam uma
conquista da modernidade a serviço do desenvolvimento do esporte. Se as torres projetavam
imensos fachos de luz sobre o campo, fazendo brilhar os olhares atônitos dos torcedores, elas
também permitiam, em jogos que ocorriam durante o dia, o crescimento da capacidade de
público, que se debruçava sobre a estrutura metálica em busca de um ângulo original, ou de
um espaço inexistente nas arquibancadas lotadas. A foto abaixo ilustrava a
inusitada apropriação das hastes de iluminação pela torcida do Atlético, demonstrando o seu
fervor pelo time.
Embora fosse considerado um time de
grande torcida na Capital, o América não
parecia se equiparar ao Palestra e ao
Atlético quanto às demonstrações extremadas de paixão.
Os noticiários reservavam a estes clubes
os comentários que continham um grande apelo
popular, e mais do que isto, com
torcedores capazes de atos grandiosos pelo amor às cores do
seu pavilhão. A abertura do Atlético a
“todas as classes sociais”, e a fervorosa “passione”
italiana davam uma peculiar
característica a estes times. Começara ali a identificação destas
equipes como “clube de massa”, ou ainda,
“clube do povo”. P. 106
Os embates entre os clubes de desdobravam
em demonstrações explícitas de
enfrentamento, e nem sempre entre as
quatro linhas demarcatórias do campo de futebol. Um
caso que exprimiu a condição de
pertencimento entre time, jogador e torcida foi a passagem
do goal-keeper palestrino Armando para os
quadros do Athletico. Tal atitude causou uma
enorme celeuma entre as diretorias das
equipes, e se estendeu para os domínios das torcidas
de ambos. Considerado como uma ofensa e
uma traição, o comportamento do goleiro não era
algo tão incomum naquele período, e tomou
tamanha proporção por ter ocorrido entre dois
clubes notadamente rivais e pela condição
de ídolo que o goleiro atingira no Palestra. A briga
pelo “passe” de Armando foi a síntese da
disputa e da rivalidade que Palestra e Atlético
forjavam, e representava a condição de
paixão, status e pertencimento que o futebol alcançara
em Belo Horizonte. Os periódicos
permitiam a compreensão do acontecimento, noticiando em
destaque os meandros do ocorrido.
O fato desencadeador do imbróglio ocorreu
na partida entre o Athletico e o
Tupinambás, de Juiz de Fora. Neste jogo,
Armando, já vestindo as camisas do alvi-negro, é
hostilizado pelos palestrinos presentes
ao estádio. A nota desportiva do jornal apontava que
“[...] Armando, o nosso keeper do preto e
branco, recebendo a saudação da numerosa torcida
athleticana. A torcida do Palestra
vaiando o maior keeper da cidade. Insultos dos dois lados e
uma porção de guardas-civis no meio”190.
A necessidade de intervenção dos guardas-civis
mostrava bem a proporção que a situação
tomara.
Em outro momento, o conflito mereceu uma
descrição esmiuçada na seção
desportiva do Minas Geraes, que apontava
os motivos e as causas do tamanho mal-estar que a
atitude do arqueiro do time palestrino
provocara:
ARMANDO PERTENCERÁ SEMPRE AO PALESTRA –
Armando é o maiorkeeper de Bello Horizonte. O mais
corajoso. O mais moço e o mais perfeito jogadorda sua posição. Em 1929, Armando
conquistou muitas glorias para o Palestra Italia.A maior foi o campeonato, que elle
garantiu heroicamente, numa serie de defesasimpressionantes. Armando, justamente por
isto, era um nome querido nos meiospalestrinos. Aconteceu, porém, esta coisa
imprevista: Armando deixou aquelle clube entrou para o Athletico, declarando seu
antigo desejo de inscrever-se pelo preto ebranco. E a sua transferencia para o
Athletico parecia definitiva desde domingo,quando toda a torcida do Palestra vaiou o
esplendido goal-keeper, publicamenteinsultado pelos antigos admiradores.
Hostilizado pelos socios do Palestra,Armando acceitou deliberadamente a
amizade e a admiração dos athleticanos. Epara regulamentar o seu acto, Armando
passou a preferir o café Iris ao BarExcelsior, de accordo com os estatutos da
Liga. Vaiado pelos palestrinos e vestindoa camisa do Athletico, parecia que o
maior pegador de bolas da cidade haviarealizado o seu proposito. No entanto, a
directoria do Palestra não pretende dar aArmando o passe, considerando que a vaia
de domingo não exprime o seupensamento. A directoria, reconhecendo os
serviços prestados por Armando, nãoquer que elle vá para o Athletico. Hontem
constava até que o magnifico goalkeeper,antes de poder alistar-se legalmente ao
seu novo club, terá um anno inteirode ferias, concedido pela directoria do
Palestra. Isto prova que Armando continúaprestigiado e que a sua demissão não será
concedida. As accusações feitas aocampeão de 1929 são, portanto, injustas,
não havendo má vontade dos directoresdaquelle club em relação ao Athletico. O
Palestra nega o passe a Armando, apenaspara conservar no seu team o brilhante
jogador, ao qual quer reaffirmar a suaestima. É um assumpto que o nosso publico
sportivo ainda não comprehendeu. Emqualquer occasião, no entanto, o Palestra
daria o passe aos seus jogadores. Para-raioe Polenta, si estes tambem pretendessem
passar para o Athletico. Como se vê,embora os associados do Palestra sejam
inimigos de Armando, a directoriareconhece o valor do grande keeper
mineiro, insistindo em conserval-o no seuprimeiro quadro.191
O “caso Armando” revelava uma condição
muito comum na época. Os jogadores
dos times eram, invariavelmente, também
simpatizantes e torcedores dos mesmos. Embora o
profissionalismo, em 1933, venha alterar
mais radicalmente tal postura, a mudança de um
clube para o outro já não era algo tão
incomum, e não deixava de prenunciar uma forma de
“profissionalismo marrom”. Os motivos que
promoviam a transferência para um outro time
estavam, via de regra, ligados à possibilidade
de melhoria financeira, já que os principais
clubes, veladamente, remuneravam os seus
principais jogadores.
Assim, a proximidade do torcer com
aspectos particularmente ligados à lógica da
modernidade, como a diversão
espetacularizada, o consumo e a fundação de um espaço
público de catarse coletiva perpassaram
como uma das mais significativas considerações a
serem demarcadas pela investigação.
Por outro lado, o nascimento de um
“estado de espírito”, colocado pelo sentimento
de pertencimento do torcedor se revelou
teimosamente inapreensível. Apenas nos foi possível
a apropriação dos indícios (e foram
muitos), que conduziram os rumos da narrativa tecida pela
trama. Indícios estes que reforçam a
importância do torcer como uma das mais significativas
práticas culturais do povo brasileiro, em
geral, e do belohorizontino, especificamente.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora haja hoje uma tentativa dentro da poética cruzeirense de roubarem para si o título de "time do povo" baseando-se no argumento de serem um clube de colônia italiana, e que dessa colônia grande parte era formada por famílias pobres, encontramos estudos que complicam a retórica cruzeirense. Primeiramente, o Yale, fora formado em sua maioria por artesãos e operários da construção civil com o desejo de representação de sua colônia européia. Todavia o Palestra Italia, que décadas depois viria a ser o Cruzeiro, na realidade, foi uma agremiação proposta pela junção de alguns ex-membros do Yale com o apoio de famílias ricas e industriais italianas. Além disso o Società Sportiva Palestra Italia foi congregado para representação e união da colônia italiana e foi uma instituição expressamente fechada, não aceitavam pessoas que não fossem de descendência italiana até 1925 e somente em 1942 o time realmente decidiu (por imposição federal) deixar de ser um clube de identidade italiana e a tentar se tornar um clube popular. A partir daí o Palestra passou a se esforçar para construir uma imagem mais heterogênea, transformando-se em Cruzeiro, buscando um apelo nacionalista para seu emblema. Então o Cruzeiro tem em sua essência a representação por meio de uma narrativa que remete à ação dos próprios europeus como agentes modernizantes e reitera valores fundamentais da modernidade ocidental, como trabalho e perseverança, astúcia e racionalidade.
Já o Atlético teve sua fundação proposta por jovens colegiais que matavam aula no Parque Municipal para sonhar com seu próprio time de futebol. Belo Horizonte era um arraial que buscava os ares da modernidade e o futebol era uma instigadora novidade esportiva que chegara da Europa e do Rio de Janeiro, e assim como toda forma de lazer e cultura, só cabia para a elite. O Atlético teve sua fundação proposta por jovens colegiais da classe média que matavam aula no Parque Municipal para sonhar com seu próprio time de futebol. O Atlético surge como um time de bairro. Com a ajuda da madrinha e padroeira do Atlético, Dona Alice Neves, mãe de um desses meninos, esse sonho dos jovens aos poucos tomou forma, e com muita dedicação dela e de outras mulheres que ela havia recrutado, esse time de futebol dos garotos foi aos poucos se tornando algo real. O Atlético foi um dos poucos times do mundo do futebol a depender de uma grande participação de mulheres em sua essência e a ter a primeira torcida organizada feminina do Brasil. Para que o time existisse, as pessoas do centro da cidade foram fazendo vaquinha, se esforçando, e o Atlético tinha o seu primeiro uniforme, e sua bola. Os quarteirões entorno do sobrado da rua Goiás, o centro da cidade, se movimentava, crescia em prol da ajuda de construir esse time, que sonhava em participar do novo e já tão querido futebol. Com o tempo, com a formação desse time de todos, os meninos começaram a vencer aqueles que tinham realmente força financeira na cidade, e os primeiros torcedores do Clube Atlético Mineiro se sentiram o próprio alicerce do clube, pois através da ajuda deles a instituição, o futebol, pôde existir. Desde sua formação, então, o Atlético contou com pessoas de todos os gêneros, etinias e classes sociais. Por não se fechar a um grupo ou modelo de torcedor como fizeram outros clubes, o Atlético era o time da maioria das pessoas da nova cidade de Belo Horizonte. Com o passar dos anos o Atlético estabeleceu seu lugar de time representante do povo de Minas Gerais, com exceção das elites, que abraçavam o América, e da colônia italiana, que abraçou o Palestra Itália ao longo das décadas de 20, 30 e 40. O Atlético foi o primeiro clube de Minas a ter em sua essência ampla participação de mulheres, de negros e da colônia árabe. O Atlético foi um clube que dependeu do carinho dos trabalhadores do centro da cidade, foi o primeiro time que soube se abrir para o mundo e foi generoso com os torcedores que bateram à sua porta. Com isso, ao longo da década de 30, 40 e 50 o Galo definitivamente era o clube mais popular de Minas Gerais, carregando a idéia da pluralidade, da miscigenação e do modo de se torcer como identidade de um povo sofredor, passional, e que se sente parte do clube.
De um modo enviesado essas duas imagens se apoiam na oposição entre modernidade e tradição para oferecer à comunidade duas alternativas de solução simbólica do conflito entre povo e as elites: a ideologia populista da mediação e do pacto social, investida do Atlético, e a ideologia liberal e racionalista da ascensão pelo trabalho, encarnada pelo Cruzeiro.
No fim das contas são duas formas diferentes de ser um time "popular", hoje em dia, obviamente ambos clubes permeiam todas as camadas da sociedade brasileira e podem se sentir verdadeiramente populares. Todavia em sua essência, e considerando (pelo menos) os cinquenta primeiros anos da história do futebol mineiro, o Atlético foi quem o povo de Minas Gerais adotou como sua paixão futebolística.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro – 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
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