terça-feira, 25 de setembro de 2018

DONA ALICE NEVES, A MADRINHA DO ATLÉTICO



“A reunião terminou, e, a partir daquele dia, passaram a se encontrar na casa de um dos fundadores, Mário Neves, no número 317 da rua dos Guajajaras, no quarteirão entre a avenida João Pinheiro e a rua da Bahia.      

        O Galo surge como um time de bairro, de jovens da classe média do centro da cidade, em um delírio desafiador contra a realidade elitista do futebol da época. Após a saudosa reunião da quarta-feira do dia 25 de março de 1908, no coreto do parque Municipal, foi combinado pelos jovens fundadores que o ponto de encontro para as primeiras reuniões do time seriam na casa de Mário. Ele  morava em uma pensão com seus pais, que aumentavam sua renda com o aluguel de quartos e o fornecimento de refeições para estudantes que não tinham família em Belo Horizonte.



 "Foi ali que a grande Alice Neves, mãe de Mário, entrou definitivamente para a vida do Atlético. Sem ela, o sonho da rapaziada dificilmente teria ido adiante."

        Com a ajuda da madrinha e padroeira do Atlético, Dona Alice Neves, esse sonho dos garotos foi aos poucos tomando forma, com muita dedicação dela e de outras mulheres que ela havia recrutado, esse time de futebol que parecia impossível, foi aos poucos se tornando algo real. 


            " O Atlético foi o primeiro clube do Brasil e certamente do mundo a ter uma torcida organizada feminina. Quem a criou foi essa mulher fantástica, que apoiou os meninos assim que tomou conhecimento da idéia e jamais permitiu que o sonho fosse posto de lado. Alice ia de casa em casa pedindo aos pais autorização para que suas filhas - algumas delas, irmãs dos próprios fundadores - integrassem o grupo. Conseguiu reunir cinquenta moças. Alice Neves era uma torcedora e tanto! As camisas e os calções usados pelos primeiros jogadores foram confeccionados por ela. Foi, sem dúvida, o primeiro exemplo de espírito atleticano na história."
          Alice também foi a primeira conselheira do Atlético, dando vários conselhos e palpites aos garotos a respeito da organização do time. O Atlético foi um dos poucos times do mundo do futebol a depender de uma grande participação de mulheres em sua essência e a ter a primeira torcida organizada feminina do Brasil.

           Galuppo conta que o Atlético "em 1910, havia deixado o terreno acanhado da rua dos Guajajaras e se mudado para um campo de verdade. Tinha pertencido ao Sport Club Football e ficava na avenida Paraopeba. No mesmo local, mais tarde, seria erguido o prédio que abrigou a Secretaria de Saúde de Minas Gerais; depois, passou a sediar o centro de convenções Minascentro. Logo em frente, no espaço ocupado pelo Mecado Central, ficava o campo do América. Mais uma vez, os jogadores e os sócios pegaram no batente para deixar o lote em condição de receber uma partida de futebol. Um dos rapazes descobriu um velho mastro, enferrujado, nos depósitos da Central do Brasil. A diretoria pediu e conseguiu que ele fosse doado ao clube. Alguém providenciou tinta nas cores preta e branca. E o mastro ganhou vida. A partir de então, uma bandeira bordada por Alice Neves nos primeiros anos de vida do time, passou a ser hasteada em dias de jogo." A torcida feminina organizada por Alice Neves esteve presente nos primeiros anos do clube, e desde o primeiro jogo do Atlético, todas com blusas brancas e saias pretas.


"Na Belo Horizonte dos anos 1910, onde praticamente tudo estava por fazer, até que não havia sido impossível para um grupo de secundaristas determinados - com o apoio de uma benemérita do quilate de Alice Neves - montar um time de futebol. A casa de Alice, no 317 da rua dos Guajajaras, já deixara de ser o ponto de reuniões da turma. A família se mudara no início da década de 20, e a pensão que ali funcionava passou a ser administrada por uma senhora conhecida como Cota. O endereço fora um dos berços do Atlético."



Alice Neves



Referências 
  • GALUPPO, Ricardo. Raça e Amor - A Saga do Clube Atlético Mineiro Vista da Arquibancada. BDA, 2003. Coleção Camisa 13. 173 p. ISBN 8572342818

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

O FUTEBOL MINEIRO E O IMAGINÁRIO POPULAR

 FUTEBOL MINEIRO E AS RIVALIDADES: SUAS RELAÇÕES COM O IMAGINÁRIO POPULAR ATÉ A METADE DO SÉCULO XX




O Atlético é o time das pessoas



1 - Fichamento do livro Quem desloca tem preferência de Marcelino Rodrigues da Silva


SILVAMarcelino Rodrigues da. Quem desloca tem preferência: ensaios sobre futebol, jornalismo e literatura. Belo Horizonte: Relicário, 2014.


Diante desse cenário, é necessário perguntar se, de alguma forma, continuamos ligados aos mitos fundadores do Atlético e da atleticanidade. Guardará a Massa alguma conexão com a memória e a experiência dos torcedores mais antigos, como meu pai, que projetaram no futebol as aspirações e os sofrimentos de sua vida, de sua nação e de sua condição social? Continua a haver, no imaginário esportivo mineiro, alguma forma de busca por subjetividade e enraizamento social? Ou se trata apenas da economia simbólica de uma multidão turbulenta, mas incapaz de se organizar, tendendo, portanto, a se comportar ora como turba ignara, ora como dócil rebanho? O que pode representar a rivalidade entre Atlético e Cruzeiro hoje? As perguntas são importantes porque colocam em questão a própria condição de sujeito político das massas, diante da falência do pacto social populista no Brasil e da dinâmica cultural do mundo contemporâneo. p.146

Embora a história dos esportes seja muito longa, remontando a inúmeros registros arqueológicos de civilizações antigas, suas formas atuais possuem estreitas ligações com a história da modernidade ocidental. Muitas das modalidades esportivas que hoje são as mais importantes, entre elas o futebol, surgiram na Europa ao longo do século XIX, no contexto do desenvolvimento do capitalismo, do Estado nacional e de uma organização social predominantemente urbana e industrial. Nesse ambiente, os sports desempenharam uma função eminentemente disciplinar, semelhante àquela que Foucault identificou em instituições como a fábrica, a escola e o hospital. p.141-142

Com suas regras bem definidas e sua organização arborescente (articulando pessoas e grupos em clubes, ligas e competições que assinalam ao mesmo tempo o conflito e a solidariedade, a semelhança e a diferença), os esportes modernos reproduziram a organização das relações na nova sociedade (a divisão do trabalho, a mediação institucional dos conflitos etc.), contribuindo para sua assimilação pelas multidões. Uma necessidade que surgiu do declínio das formas tradicionais de pertencimento social, como centralidade da Igreja, a autoridade divina do monarca, a distribuição feudal das riquezas e do poder etc. No vácuo dessas ideologias, a mentalidade moderna teve no esporte um aliado para superar o desenraizamento provocado por esse declínio e estabelecer formas de comunicação e sociabilidade que dessem sustentação às novas estruturas políticas, econômicas e sociais.
No Brasil o esporte cumpriu função semelhante, mas com especificidades importantes em relação ao modelo europeu. O esforço de reconstruir os laços sociais esgarçados pelo desenraizamento moderno (aqui intensificado pela brutal urbanização das primeiras décadas do século XX e pela tardia abolição da escravatura) demandava uma operação de mediação, que ligasse a mentalidade esportiva à memória e às tradições dos grupos que se amontoavam nas ruas e cidades. Por isso, a história e o imaginário do futebol no Brasil estão repletos de conexões com a experiência histórica desses grupos.
Nos primeiros anos do século XX, o esporte era tão elitista quanto a vida política do país, e havia todo um esforço para manter à margem dele as classes menos favorecidas social e economicamente. A história de sua popularização se tornou uma narrativa mítica de como negros e pobres passaram a ser aceitos na vida esportiva, sofrendo e superando obstáculos para alcançar o reconhecimento. p.142

[...] Naquele contexto de exacerbação das tensões sociais, a articulação dos mitos do futebol a partir de dicotomias como negro x branco, povo x elite e centro x periferia respondia a necessidades urgentes de comunicação e sociabilidade, que permitissem a mediação e o convívio entre os diferentes grupos sociais. p.143

O caso do futebol em Belo Horizonte guarda semelhanças e diferenças em relação ao Rio de Janeiro, que tem sido a matriz da historiografia do futebol brasileiro. A moda dos sports chegou à cidade praticamente junto com sua fundação, em 1897, e o Atlético surgiu apenas onze anos depois. p.143

Erguida em poucos anos a partir de um pequeno arraial, Belo Horizonte foi rigorosamente planejada segundo parâmetros urbanísticos modernos, incorporando uma vocação e um simbolismo de prosperidade, progresso e espírito republicano. Embora estivesse no centro das Minas Gerais, com suas montanhas e tradições, a cidade asséptica não guardava uma memória tão viva e conflituosa das profundas desigualdades da sociedade brasileira e das revoltas e turbulências que marcaram a história de outros centros urbanos. p.143


[...] explorei a hipótese de que se tratava, então, de uma rivalidade construída em torno de duas atualizações diferentes da idéia do “popular“. Uma baseada no imaginário do trabalho e da perseverança (no caso do Cruzeiro, com sua história ligada à trajetória dos imigrantes italianos no Brasil) e outra baseada no imaginário da miscigenação e da mediação entre grupos e classes sociais (caso do Atlético, clube que nasceu nas elites e se tornou popular ao admitir jogadores negros e pobres). p.145


Considerando essa configuração, ainda podemos ver na rivalidade esportiva uma economia simbólica de alguma forma ligada à história dos clubes e das relações entre os diferentes grupos sociais. No jogo esportivo e político, não se jogava apenas o conflito entre as elites e o povo, de certa forma apaziguado pela ideologia populista, mas também a contradição, constitutiva de nossa identidade, entre duas formas de ser popular. Essa contradição se reproduzia, por exemplo, nas recorrentes comparações entre Leônidas da Silva e Domingos da Guia, ou entre Garrincha e Pelé, que simbolizavam o conflito entre o lúdico e a disciplina, entre o dionisíaco e o apolíneo, entre a arte e o trabalho etc. Equilibrando-se nesses dois pilares, o Brasil seria capaz de se impor às outras nações e revelar ao mundo o valor de suas singularidades. p.145

Mas a bola não parou de girar e os sentidos dos signos esportivos continuaram se deslocando. A colônia italiana se misturou à comunidade brasileira e o Cruzeiro abriu suas portas aos que não pertenciam a ela, aumentando sua torcida no embalo das conquistas dos anos de 1960. O Atlético consolidou sua imagem de time de massa, reunindo em suas hostes desde a “cachorrada“ que ocupava as antigas gerais do Mineirão até a torcida elitizada dos bairros nobres da zona sul de Belo Horizonte. p.145


A inspiração para a escolha dos bichos vinha, em grande medida, de elementos que já faziam parte da imagem dos clubes: o Atlético, com sua fama de “bom de briga“ e seu uniforme preto e branco, que lembrava um galo da raça carijó, seria o Galo; o Cruzeiro, que costumava ter dirigentes italianos de incomparável esperteza para os negócios (como Mário Grosso, presidente da época), seria a Raposa; p.159 (Galuppo, 2003, p.78)


O Atlético, forte desde as primeiras décadas do século e cada vez mais querido pelos torcedores das classes populares, e o Cruzeiro, que com sua astúcia e perseverança vinha se tornando cada vez mais poderoso, já começada a cultivar a rivalidade ritual que dividiria a cidade ao meio, duas décadas depois. Enquanto isso, o América se encontrava  em um lento processo de decadência, que começou na década de 1930 e se completou apenas nos anos 1960. O combate fabuloso entre o Galo, que defende bravamente seu terreiro das ameaças externas, e a Raposa, bicho atilado que busca com astúcia invadir o território inimigo, foi logo assimilado pelos adeptos de ambos os clubes.  Conta-se, por exemplo, que Zé do Monte, ídolo do Atlético nas décadas de 1940 e 1950, costumava entrar em campo com um galo debaixo do braço. Em resposta, a torcida cruzeirense prometia soltar uma raposa em campo. Para caçar o bicho de Zé do Monte. p.160

Metaforizada pela eterna luta dos dois bichos na disputa pelo terreiro belo-horizontino, a rivalidade ritual entre Atlético e Cruzeiro parece, então, opor dois conjuntos diferenciados de representações e valores, por meio dos quais se constroem duas imagens distintas. Se hoje ambos os clubes reivindicam para si o atributo “popular“, não há dúvidas de que se trata de duas formas diferentes de ser popular. p.164

Essas significações reverberam, de forma diluída e disseminada, em inúmeros discursos da cultura esportiva belo-horizontina. A fundação do Atlético por um grupo de estudantes de boa família é contada como um momento de rebeldia inconsequente de garotos que mataram aula para se encontrar no coreto do Parque Municipal. O ambiente social elitista dos primeiros anos é amenizado pela figura acolhedora de Dona Alice Neves, mãe de um dos fundadores que acolhia os primeiros encontros do grupo e é tomada como símbolo de um clube que “soube se abrir para o mundo“ e “foi generoso com os torcedores que bateram à sua porta“ (Galuppo, 2003, p.41)


No panteão dos grandes ídolos atleticanos, destacam-se figuras como o humilde e folclórico Dario Peito de Aço e o negro Ubaldo (clique para saber mais), que fazia “gols espíritas“ na década de 1950 e foi carregado pela massa do estádio Independência até o centro da cidade após um jogo em 1955. Mediação social e potencial de conflito se fundem na mitologia do Galo de uma forma semelhante à que, dentro de certa tradição cultural, tem sido identificada como característica definidora da identidade nacional brasileira. p.164


No final dos anos 20 a presença de dirigentes e jogadores, como o craque Said, evidenciaria a participação importante dos imigrantes de origem árabe dentro do clube. p.114

Do outro lado da fronteira simbólica que divide a cidade ao meio, na galeria de heróis cruzeirenses, os craques do gramado (muitos deles de origem italiana) dividem as glórias com dirigentes quase tão celebrados quanto os próprios jogadores. p.164

[...] Seria possível dizer que essas duas narrativas de tradição clubística se assemelham na ambiguidade, oferecendo à sociedade duas alternativas para a solução simbólica  do conflito entre o povo e as elites, necessária ao processo de modernização: a ideologia populista da mediação e do pacto social, investida no Atlético, e a ideologia liberal-capitalista da ascensão pelo trabalho, encarnada no Cruzeiro. P.166

Tornados populares, os dois clubes mantêm uma relação espetacular. O Atlético inveja e busca a racionalidade cruzeirense, enquanto o Cruzeiro tem ciúmes da paixão e da fidelidade da torcida atleticana. p.166

Nos anos 1940 e 1950, o Atlético se manteve sempre no primeiro plano, enquanto o América continuava em lenta decadência e o Cruzeiro em progressiva ascendência.
Foi apenas na década de 1960 que o Cruzeiro passou a ser amplamente considerado como o principal rival do Atlético, conquistando títulos importantes e ampliando sua torcida graças a um time sensacional. p.162

A escolha da Raposa como símbolo do Cruzeiro, por sua vez, fazia referencia à trajetória de muitos dos membros da colônia italiana em Belo Horizonte, cuja astúcia para os negócios possibilitou a ascensão às camadas privilegiadas da população da cidade. Ao lado dessa astúcia, que emula uma racionalidade prática típica do capitalismo, o trabalho e a perseverança também marcaram a trajetória daqueles imigrantes e compõem o cerne da mitologia do clube. p.163

Foi nesse contexto que surgiu o Società Sportiva Palestra Italia, clube que congregava os membros da numerosa colônia italiana de Belo Horizonte, formada com a importação de mão de obra estrangeira na época da construção da cidade. Os italianos e seus descendentes eram, em sua maioria, comerciantes, artesãos, trabalhadores da construção civil e operários, embora alguns empresários e industriais da mesma origem também tivessem se estabelecido na cidade. Com a ajuda das famílias italianas mais ricas e a incorporação de alguns jogadores que atuavam no Yale, o clube se formou, motivado pelo desejo de representação e integração dos membros da colônia italiana. p.106

Na década posterior, aconteceu no Brasil o processo de profissionalização do futebol, consequência das tensões provocadas por sua disseminação entre as diferentes classes e grupos sociais. Enquanto os defensores do amadorismo tentavam preservar o caráter elitista do esporte, os adeptos do regime profissional optavam por aderir às transformações motivadas pela popularização. p.106

As consequências desse processo se fizeram presentes no universo esportivo, com uma significativa mudança no perfil sociocultural das torcidas. O Atlético reforçou sua escolha por uma imagem popular [...] [Na década de 1940, essa imagem do Atlético como um clube popular já estava consolidada, como mostra uma matéria publicada pelo O Diário Esportivo em 2 de agosto de 1945: “O Atlético é o preferido pelas grandes massas do nosso futebol. Grêmio de ricas tradições esportivas, ‘campeão dos campeões‘, ele arrasta para os nossos pobres estádios verdadeiras multidões, sedentas de emoções, loucas para delirar com as jogadas de seus prediletos. Os proletários em geral são todos atleticanos. Homens que vivem do labor cotidiano, e no descanso domingueiro vão para os nossos campos dar alegria e incentivo ao nosso esporte“] p.108




A rivalidade entre Atlético e Cruzeiro, enfim, não surgiu de modo repentino, mas foi lentamente formada por meio de progressivos deslocamentos, que ampliaram o perfil sociocultural das torcidas e deram aos dois clubes uma identidade eminentemente popular. p.109

Os rojões preparados para uma vitória que não chegou hoje poderão sempre ser utilizados na derrota do rival amanhã. P.167

Em inúmeras oportunidades a fama de aguerrido e vingador tem sido lembrada para evocar uma capacidade especial de superação nos momentos mais difíceis. Essa idéia reverbera, por exemplo, na célebre máxima do escritor Roberto Drummond, torcedor do Atlético e cronista esportivo entre meados dos anos de 1960 e início de anos 2000: “se houver uma camisa branca e preta pendurada no varal durante uma tempestade, o atleticano torce contra o vento“ (Drummond, 2007, p. 166). Com a definitiva incorporação da imagem de popular pelo clube, o signo da raça acabou adquirindo certa ambiguidade, remetendo também à forte presença de negros e mulatos no time e na torcida atleticana. p.113

É interessante observar que dois momentos especialmente significativos da história do clube, marcos decisivos na superação da condição de “time de colônia“, recebem nesses e em outros textos um tratamento visivelmente tímido. A abertura para jogadores que não pertenciam à colônia italiana, somente em 1925, e a troca de nome de Palestra para Cruzeiro, em 1942, são relegadas a um segundo plano, aparecendo apenas em rápidas menções que não escondem certo desconforto. A exceção fica  por conta do livro de Plínio Barreto e Luiz Otávio Trópia Barreto, que dedica duas páginas ao episódio da mudança de nome, contra italianos, na época da Segunda Guerra Mundial [...] p.117

No início de 1942, um decreto-lei do governo federal estabeleceu a nacionalização dos nomes, e o Palestra trocou o Itália por Mineiro. (...) com a declaração de guerra à Alemanha, à Itália e ao Japão, o debate interno tomou conta do Barro Preto. Era necessário nacionalizar ainda mais o nome do clube. [...] Sem consultar o Conselho Deliberativo, o presidente Enne Cyro Poni adotou o nome Ypiranga Esporte Clube, em homenagem à data máxima brasileira. Uma derrota para o Atlético por 2 a 1 foi definitiva para condenar a existência do Ypiranga. (...) O presidente do Conselho, Oswaldo Pinto Coelho, sugeriu o nome Cruzeiro Esporte Clube. Era uma homenagem ao principal símbolo do país. (Barreto & Barreto, 2000, p.72-73) p.118

No livro de Galuppo, a história da fundação do Atlético é recheada com informações pitorescas sobre o cotidiano daquele grupo de garotos, como o mutirão para limpar o terreno do primeiro campo, o modo como foram conseguidas as primeiras bolas e o apoio que recebiam da mãe de um dos fundadores, Dona Alice Neves, que costurava os uniformes, oferecia sua casa para reuniões e liderava a torcida feminina: “Foi, sem dúvida, o primeiro exemplo de espírito atleticano na história”
Com sua mitologia de raça e paixão, o Atlético parece reafirmar as singularidades de um povo passional, intuitivo e sofredor, simbolizando as energias incontroláveis da multidão heterogênea e sua capacidade de se opor à modernização ou assimilá-la de forma diferencial. O Cruzeiro, por sua vez, parece reforçar o vetor desse processo, por meio de uma narrativa que remete à ação dos próprios europeus como agentes modernizantes e reitera valores fundamentais da modernidade ocidental, como trabalho e perseverança, astúcia e racionalidade.
De um modo enviesado essas duas imagens se apoiam na oposição entre modernidade e tradição para oferecer à comunidade duas alternativas de solução simbólica do conflito entre povo e as elites: a ideologia populista da mediação e do pacto social, investida do Atlético, e a ideologia liberal e racionalista da ascensão pelo trabalho, encarnada pelo Cruzeiro. p. 121-122

Como disse anteriormente, não é fácil localizar nessa trajetória os fatos e motivações que deram origem aos fortes sentimentos revanchistas que hoje opõem os membros das duas hostes. Mais difícil ainda é interpretar essa história e extrair dela os significados e as relações afetivas que a sociedade projeta nos dois clubes e em sua rivalidade. O protagonismo esportivo das duas instituições certamente é o responsável por elas serem as preferidas do público, mas de modo algum é capaz de explicar as configurações que essas paixões assumiram na vida esportiva mineira. Assumindo meu movimento apenas como um primeiro esforço nesse sentido, tento neste trabalho propor uma primeira resposta a essas questões. Para isso recorro a dois livros lançados recentemente pela editora DBA, como parte da coleção “Camisa 13”, sobre os grandes clubes brasileiros. Os livros são Raça e Amor: a saga do Clube Atlético Mineiro vista da arquibancada, de Ricardo Galuppo, e Páginas Heróicas, onde a imagem do Cruzeiro resplandece, de Jorge Santana. Somados a alguns pouquíssimos outros, esses dois livros são parte importante da limitadíssima bibliografia sobre a história do futebol mineiro.
Sobre esses dois volumes, é necessário dizer, antes de tudo, que não são textos construídos segundo os rigores do trabalho acadêmico. Ao contrário, são relatos que, embora baseados sobre um elogiável trabalho de pesquisa, transitam do registro jornalístico ao libelo apaixonado, já que, no espírito da coleção, ambos foram feitos por autores que não escondem sua condição de torcedores fiéis dos clubes sobre os quais escreveram. Longe de ser um inconveniente para os objetivos deste trabalho, essa característica faz com que os dois livros sejam, na verdade, legítimas expressões do imaginário, das tradições e da rivalidade que cerca os dois clubes.

Em ambos os textos, os sentimentos revanchistas entre atleticanos e cruzeirenses aparecem a todo momento. Os dois autores adotam, inclusive, certas formulas verbais para se referir ao rival, manifestando através delas a importância que esses sentimentos possuem na definição de sua própria identidade. O atleticano Ricardo Galuppo evita durante todo o texto usar a palavra “Cruzeiro”, referindo-se ao clube como “aquele time do Barro Preto”, “o ex-Yale”, o “ex-Palestra”, “a turma do Barro Preto” etc. Nas primeiras páginas do livro, o autor já avisa: “Em respeito à família atleticana, certas palavras não serão mencionadas neste texto, nem mesmo como referência a uma antiga moeda nacional – que saiu de circulação sem deixar saudade.” (GALUPPO, 2003: 21). Já o cruzeirense Jorge Santana, se não se nega a escrever o nome do rival, reserva sempre a ele algum comentário ou epíteto irônico ou depreciativo, como “galeto com polenta” e “os empedernidos secadores da vizinhança” (SANTANA, 2003: 15, 21). Assim, os dois autores já mostram o quanto a presença constante e ameaçadora do outro é vital para suas próprias identidades de torcedores, mesmo que esse outro seja seu semelhante e seu vizinho mais próximo, ou talvez exatamente por isso. Mas é quando buscam definir o que é ser torcedor de seu clube, descrevendo suas origens e seus vínculos com a sociedade, que os autores dão as pistas mais interessantes sobre os significados da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro.

Na mística que cerca o Atlético, podemos certamente encontrar muitos dos elementos através dos quais se definiu, em âmbito nacional, uma certa imagem do “povo brasileiro”. Como uma agremiação eminentemente popular, o Atlético é o clube do “povão”, o clube da “massa”, dos pobres, dos negros e dos mestiços. Isso é perceptível, por exemplo, no verso do hino do clube utilizado para nomear o livro de Ricardo Galuppo (“lutamos com muita raça e amor”), em que a palavra raça ecoa não apenas o espírito aguerrido do esportista, mas também a presença do negro no esporte e os sofrimentos a que ele foi submetido em razão dos conflitos raciais. No livro de Ricardo Galuppo, esse sentimento está presente, por exemplo, na narrativa da ascensão de Ubaldo, um “menino fujão”, um “negro de corpo roliço” famoso por seus “gols espíritas”, que foi um grande ídolo do time na década de 1950:

Foi naquele ano que a torcida começou a saudar Ubaldo com uma música especial. Sucesso do carnaval de 1955, a marcha “Tem nego bebo aí”, de Mirabeau e Ayrton Amorim, era tocada em todo o país. Dali em diante, sempre que o centroavante do Atlético entrava em campo, a massa cantava: “Tem nego Ubaldo aí! Tem nego Ubaldo aí!” O artilheiro teve o passe vendido ao Bangu no final daquele ano e voltou pouco tempo depois, em 1958, quando recebeu da torcida uma das maiores homenagens já prestadas a um jogador de futebol.
Num jogo contra o Ex, realizado em 7 de dezembro de 1958, Ubaldo fez um de seus gols inexplicáveis. A torcida invadiu o gramado, carregou seu ídolo e ganhou as ruas. O desfile seguiu pela avenida Silviano Brandão, subiu em direção à Floresta, passou pela praça da Estação e, sempre ao som de “Tem nego Ubaldo aí!”, foi parar na praça Sete, no coração de Belo Horizonte. Ubaldo jamais se referiu àquele fato com modéstia. “Naquele tempo, só duas pessoas eram carregadas nos ombros do povo. O presidente Juscelino Kubitschek e eu.” Orgulho legítimo de quem foi protagonista de uma cena extraordinária. (GALUPPO, 2003: 94)






 “Raça e amor”, independente da classe social ou da cor da pele: “O povo alvinegro é assim – passional, fiel, generoso. (...) Nosso time não tem simpatizantes. Tem torcedores apaixonados. Quem ama o Galo se considera o ser mais atleticano do mundo.” (GALUPPO, 2003: 20). A esse deslocamento, pode ser relacionada uma outra característica, associada freqüentemente por Galuppo ao Atlético e sua torcida: a heterogeneidade – seja ela social, profissional ou racial. Ecoando as palavras do autor, José Eustáquio de Oliveira afirma, na orelha do livro:

Ser atleticano é ser intrépido, gentil, solidário, engraçado, triste, alegre, mal-humorado, gozador, inteiro, estilhaçado, criança, adulto, esclerosado, homem, mulher, pobre, rico, remediado. Pai-de-santo, pastor, ateu e até cardeal. Moreno, louro, vermelho, amarelo. É preto e branco!


Mais do que um clube dos pobres, portanto, o Atlético é um clube “da massa”. Esse conceito deve ser tomado, aqui, de modo teoricamente mais rigoroso. A massa é aquela entidade em que toda a sociedade urbana e moderna se une, tornando-se um aglomerado heterogêneo, gelatinoso e altamente inflamável, que tanto pode ser conduzido como um gentil rebanho quanto pode explodir em revoltas sangrentas e incontroláveis. Mas é também o lugar onde as classes e as raças se encontram, para produzir o fenômeno da mestiçagem étnica e cultural, do qual surgiu a imagem do Brasil e do brasileiro que durante o século XX dominou o imaginário de nossa sociedade.
A essas conotações associadas ao Atlético podem ser opostas determinadas características da representação da idéia do “popular” que se faz através da mitologia cruzeirense. Se a torcida do Atlético é apaixonada, a do Cruzeiro é exigente, ranzinza, acostumada a cobrar o desempenho de seu time. Pois, embora os cruzeirenses também não se cansem de declarar seu amor pelo clube, o que os distingue não é a atitude passional. À possessão da “Galoucura”, o Cruzeiro opõe a organização e a diligência de sua “Máfia Azul”. Nascido no interior de uma colônia de imigrantes, o Cruzeiro parece se definir sobretudo por aquilo que possibilitou aos italianos sua inserção na sociedade brasileira: o trabalho árduo e incansável, por meio do qual se pode construir lentamente um futuro bem sucedido. É o que se vê, por exemplo, nos seguintes trechos da narrativa de Jorge Santana sobre as origens e o desenvolvimento do tal “clube do Barro Preto”:
O Palestra mineiro foi criado por trabalhadores e recebeu a adesão dos comerciantes e industriais, todos italianos. Era uma cosa nostra, fechada às demais colônias e ao restante da população. Os italianos pobres queriam um clube para integração social, lazer e cultura física e os ricos, um cartão de visitas para exibir à elite da capital. O Palestra, assim como a Beneficência Italiana, deveria espelhar a capacidade de realização que levara tantos deles ao sucesso. (SANTANA, 2003: 30)
E mais à frente:
É aí que se inicia a saga do Cruzeiro Esporte Clube, o qual, nas palavras de Luiz Carlos Rodrigues, “se fez grande sem lances de heroísmo pungentes e sem heróis miraculosos, cuja grandeza foi plasmada no cotidiano, na simplicidade de um trabalho constante e reiterado, quase anônimo, cuja somatória, ao correr do tempo, conferiu a dimensão grandiosa, internacional, universal, de um dos maiores clubes do mundo! (SANTANA, 2003: 32)

Vemos, então, que Atlético e Cruzeiro, com suas origens, suas tradições e seus mitos particulares, representam duas imagens bem diferentes da idéia do “popular”. Se buscarmos por relações entre essas representações e certos elementos do contexto em que elas foram produzidas, como os processos de modernização da sociedade brasileira e construção da identidade nacional, veremos que elas desempenham também papéis bastante diferentes, e talvez complementares. Na mitologia do Atlético podemos identificar o esforço da mediação, do encontro entre as classes e grupos sociais, para o qual foi necessário estabelecer conexões com a memória e a cultura dos menos favorecidos, por exemplo, através da escolha da “raça” como valor primordial. Já no imaginário cruzeirense, parece predominar sobretudo a idéia do “trabalho”, tomada como valor fundante da vida esportiva e caminho para a prosperidade, no futebol e fora dele. Enquanto o Atlético, miscigenado e contaminado, reafirma a diferença do brasileiro passional, intuitivo e sofredor, que de algum modo perturba o processo de modernização, o Cruzeiro reforça o vetor desse processo, fincando suas raízes na ação dos próprios europeus como agentes modernizantes e estabelecendo como seu valor primordial o próprio fundamento do sistema capitalista.

De um certo modo, essa opção interpretativa mais radical nos lembra que, mesmo se estiver fundamentada na experiência dos grupos sociais que se envolveram com os clubes ao longo de sua história, qualquer interpretação da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro terá algo de abusivo e suplementar. As histórias do futebol e da vida são sempre mais complexas que os mitos identitários e as construções historiográficas. É preciso reconhecer que tende para o esquematismo qualquer tentativa de “explicar“ o universo futebolístico por meio do enquadramento, da classificação e da oposição clara e coerente dos signos esportivos. Porque o futebol, como esporte, espetáculo e universo comunicacional, extrai sua eficácia justamente da capacidade de produzir narrativas que se cruzam, diversificam e desdobram, ao sabor das circunstâncias e das posições enunciativas. [...] De qualquer modo, as tensões e os antagonismos sociais estarão sempre presentes, estabelecendo configurações que desafiam a interpretação. p.167-168








2 - A INVENÇÃO DO TORCER EM BELLO HORIZONTE: Da Assistência ao Pertencimento Clubístico (1904-1930) de GEORGINO JORGE DE SOUZA NETO

 SOUZA NETO, Georgino Jorge deA invenção do torcer em Bello Horizonte: da assistência ao pertencimento clubístico (1904-1930). 2010.




       O trecho da nota escrita por “Carpas”, articulista esportivo do Correio Mineiro,
atentava para a possibilidade de declínio do clube decacampeão da cidade. A perda do título do campeonato de 1926 para o Atlético e o franco desenvolvimento do Palestra faziam acender a preocupação dos muitos simpatizantes do vitorioso alvi-verde. A segunda metade da década de 1920 é indicadora de uma profunda mudança no futebol em Belo Horizonte. A quebra da hegemonia americana representava apenas um dos vários elementos que emergiramneste período. À reboque destas transformações, obviamente, estavam os sentidos e significados atribuídos ao torcer, mais intenso e abrangente que os anos anteriores.

       Mais do que propriamente uma modificação nos modos de “torcer”, os novos
comportamentos e situações registravam uma hipertrofia daquilo que havia sido construído
pelo que se convencionou chamar de torcida. A idéia de espetáculo e diversão, a participação
da mulher, os sururus e a própria noção de pertencimento e paixão clubística são alçados a
uma dimensão inimaginavelmente grandiosa.


O bicampeonato de 1926-1927 do Athletico, e a conquista dos títulos de 1928-1929 pelo clube italiano revelavam uma nova composição de forças rivais e acentuava adisputa entre ambos. Se a primeira metade da década de 1920 assistiu à consolidação doacirramento entre America e Athletico, a outra metade celebrou a construção de umarivalidade que se tornaria histórica. Os jornais da época regurgitavam de notícias sobre este confronto, e anunciavam a intensa movimentação na cidade, em instantes que precediam o esperado embate. Uma das formas mais explícitas de paixão entre os clubes estava no ato de apostar. E apostar começava a fazer parte da rotina dos jogos de futebol em Belo Horizonte, principalmente quando os grandes se enfrentavam. A partida entre o Palestra Itália e o Athletico Mineiro, em junho de 1930, exemplificava este estado de coisas, como na descrição do anúncio do jogo pela seção esportiva do Minas Geraes, que trazia:


Sim, é hoje. Data historica. O maior dia deste anno. Gente vibrando de enthusiasmopuro. E outros misturando enthusiasmo com ambição. Grandes apostas no Athleticoe no Palestra. Segunda-feira, novos ricos. E sujeitos tristes, exactamente comoaquelles que gastam tudo no Carnaval. Shoot valendo dinheiro. Apostas de contosde réis. Mas si o jogador fôr profissional, campanha contra elle. Que importa! Sãoos apostadores que animam o jogo com as brigas.154

       Fazia-se de tudo na torcida pelo time predileto, ainda mais quando esta “torcida”
valia alguns milhares de réis. Estar presente em campo, gritando e vibrando (ou brigando,
como indicava a nota acima) com o desenrolar do jogo, nem sempre era suficiente para
garantir a conquista da vitória. Os casos de “ajuda espiritual” surgiam como recurso de
incentivo, principalmente quando as apostas em dinheiro se associavam ao torcer. O periódico
Goal apresentava uma matéria intitulada “Macumba”, que bem ilustrava a situação apontada.
Nela, o texto traz à tona reveladores e importantes hábitos constituídos pelos torcedores, nos
anos finais da década de 1920:

      Os torcedores do Palestra e do Athletico fizeram apostas a semana inteira. Dentro
dos cafés, muita gente sonhou com a victoria do club e com melhores planos de
restauração financeira. Essa grande agitação foi principalmente notada pelas
agencias de loterias, prejudicadas com o grande interesse despertado pelo jogo de
domingo. Ganhar dinheiro torcendo, é muito mais agradavel do que esperar que as
bolinhas cahiam com o numero. A semana foi péssima para os cambistas. [...]
Emquanto o pessoal casava os cobres aqui na Avenida, Braulino, o mais inspirado e
subtil dos apostadores, embarcou para Matheus Leme. Queria que um velho
feiticeiro garantisse a victoria que elle, cheio de enthusiasmo, já desejára ao
Athletico, apostando nelle mais de quinhentos mil réis. E Braulino ouviu
surprehendido, esta resposta:

- Ê moço, ocê veio tarde. Já teve aqui o sr. Hugo Savassi, que me pediu p’ra pôr ospausinhos p’ro Palestra ganhá.

     A verdade é que, na disputa entre Braulino e Hugo Savassi, o palestrino
comemorou a vitória do seu time com alguns tostões a mais no bolso. Obviamente, a
influência do “velho feiticeiro” no placar do jogo (o Palestra venceu por dois a um), não pode
ser aqui apontada como determinante no resultado, mas certamente muitos torcedores
viajaram a cidade de Matheus Leme em partidas posteriores.
A crônica desta partida no Minas Geraes é a narração precisa do movimento
estabelecido pelo torcer na Capital mineira, e indica elementos fundamentais para a
compreensão do lugar ocupado pelo futebol e pelas torcidas na cidade. Nela, o cronista vai da
expectativa que antecede o jogo à frustração e alegria dos torcedores. Sobre os momentos que
antecediam ao confronto, o texto descrevia:

Quasi que não havia missa das dez. O povo tinha pressa de ver si o Athletico,naquelle dia bellissimo de ante-hontem, conseguiria desfazer a influencia da suafalta de sorte tradicional. Os retardatarios sahiram da egreja ás onze horas ecorreram para o campo. As archibancadas já estavam cheias. Cedo ainda, havíamosassistido os preparativos da commissão de Finanças do Athletico, dirigida porFabio Brant. O thesoureiro escalava os auxiliares, distribuindo malas, que empoucos instantes se encheram assombrosamente com os cobres daquella torcidaapressada. Vinte mil pessoas. Ninguem contou. Mas toda a gente calculava assim.E o proprio Mario de Castro, que é espírito observador, tambem affirmava: - Euprevia esta assistencia. Eu sabia que hoje isto ia ficar assim. Alda e Natividade, semtempo de almoçar, comiam biscoitos, com uma naturalidade que já estavachamando a attenção de todos. Benedicto, da Imprensa Official, estava firme nomeio de umas athleticanas bonitas, que elle descobriu e conquistou no Barro Preto.Já não havia logares. Tudo apertado. Por isto, houve indignação quando umamulher enorme, typo Studebacker, foi pedindo licença e derrubando gente nocaminho. A hora do jogo veiu, poderosa, destruindo todas as attenções dispersas.Fazendo esquecer as contrariedades da vida. Approximação da hora tragica.Comparações passadistas dos minutos que são eternidade. Arrepios no corpo.Physionomias mostrando a inquietação interior. Nervos, fios encobertos deelectricidade (nós andavamos doidos para escrever isto). Ansiedade de sujeitosmalucos que fizeram apostas.156

     Como não há uma estatística oficial de público para esta partida, os vinte mil
presentes poderiam representar um exagero entusiástico do cronista, mas apontava para uma
quantidade considerável de pessoas na assistência do jogo. Para se ter uma idéia, praticamente
20% da população da cidade estaria presente ao campo. Para efeito de comparação
(guardando todas as variáveis anacrônicas), é como se em um confronto entre as duas equipes
hoje, comparecessem cerca de 500.000 espectadores, ou ainda em torno de seis mineirões
completamente tomados. Embora a quantidade seja um parâmetro importante, os
comportamentos do público também instigavam apontamentos significativos. À parte a espera
e a expectativa relatada na crônica, o desdobramento do confronto mostrava as plurais reações
dos torcedores. Em uma outra parte, a narrativa seguia afirmando:

O jogo Palestra e Athletico é o que consegue reunir em campo o maior numero depessoas. E o de ante-hontem até fez com que Bello Horizonte visse carasinteiramente desconhecidas, de velhos e modestos italianos, que vivem retrahidosno trabalho. Alguns nem sabiam torcer. Mas, por instincto, dahi a pouco ellestambem acertavam e se entendiam em lamentações, si o Palestra shootava por cima:- Per la madona. Impossibile. [...] Chico Velloso foi notavel nas cabeçadas. JoséAlexandre defendeu penalty. Foi mesmo o segundo team que começou aenrouquecer a torcida do Athletico, a maior da cidade. O Palestra tinha um terço daassistencia. E o jogo do Palestra, embora compromettido pela brutalidade, mostrouo valor do seu segundo team, digno do enthusiasmo da sua torcida. [...] O Palestra foi inventado em Bello Horizonte para vencer o Athletico. E o Athletico foifundado para vencer cariocas e paulistas. Compensações. O privilegio de doisclubs. Quando Mario de Castro ia bater o penalty, uma athleticana bonita, do grupodas meninas do Benedicto, ficou afflicta: - Elle acerta. Deus é grande! - Sim,respondeu outra moça, branca como um bilhete de loteria. Deus é grande, mas o“goal” é muito menor. E Mario de Castro shootou por cima. Arthur Martini, umrapaz que ganhou dez contos de réis nas apostas de ante-hontem, falava em defesado Palestra: - Mêdo nós não temos. [...] E agora nada mais de football. Esse jogo dedomingo está continuando feroz na Avenida, no Iris e no Excelsior. Vocês viramaquella bola que passou por cima? E aquella outra, muito differente, que passou porbaixo? O Palestra póde recordar o jogo, porque venceu. Mas o Athletico deveesquecel-o, exactamente porque reconhece a sua derrota.157

       Nas palavras do jornalista que cobrira a partida, o confronto entre Palestra e
Atlético seria aquele com maior capacidade de atração do público. As campanhas vitoriosas
nos últimos anos da década e a popularização dos clubes ajudaram a forjar o início daquela
que seria a maior rivalidade no Estado, bem como das maiores torcidas. Ao final da nota, a
referência à continuação da partida no decorrer da semana, em pontos de convívio público da
cidade, indicava o quão intenso o confronto se desenhara no espaço das práticas dos
habitantes/torcedores.

       O tom de algumas crônicas narrativas nas partidas entre o Atlético e o Palestra
parecia prever o desdobramento futuro dessa rivalidade. Em um confronto entre estas duas
equipes, ocorrido no dia 09 de junho de 1929, a descrição das sensações despertadas ante o
embate dos clubes denunciava o advento de uma nova e intensa emulação:

O domingo sportivo despovoou muito centro o centro da cidade. Bello Horizonteficou sendo o campo do Athletico. Ao meio-dia, a multidão da torcida começou amovimentar-se. Automoveis cheios. Omnibus andando pesadamente. Subindo omorro, grandes grupos de gente apressada davam a idéia de uma emigração penosa.Quando, afinal, chegavam as proximidades do “stadium”, todos precipitavam-se naconquista de um logar. Nas archibancadas, quasi cheias, os espaços iamdesapparecendo. Moças. Senhoras. Familias inteiras, puxadas por homens queabriam caminho, ás vezes sem pedir licença. Espectadores calmos, com a mania daestatística, fazendo cálculos. 15.000... 18.000... - De um lado da archibancada atorcida do Athletico, a maior da cidade. Do outro, a do Palestra. Na geral e em todaa parte, ainda a torcida do Athletico, prolongando-se até fóra do campo. Vibraçãoem todos os grupos. Previsões exaggeradas. Palpites. Curiosidade de saber o nomedo juiz. E os retardatarios entrando, incommodando. Pedidos de desculpa. Revoltasintimas. Murmurações sobre a delicadeza e a sua necessidade. – [...] As torcidasentreolham-se. Palestra! Athletico! [...] Começa então a verdadeira ansiedade. Asemoções consideráveis e definitivas. Os athleticanos, já triumphantes, esperando avictoria nova. Os palestrinos mexendo no arquivo dos campeonatos. Gritandoresultados antigos de outros jogos. E o “stadium”, enorme, cheio, lembrando o jogodo Corinthians. Os athleticanos confiantes. [...] Poucos minutos para terminar.Palestra, três goals. Athletico, um. A archibancada começa a esvaziar-se. Algumasbrigas de torcedores. Murros e confusão. É quase noite. Os palestrinos ficam até ofim. E a torcida do Athletico retira-se, convencida da magnifica victoria dosjogadores de camisa verde.158

       Se antes o futebol despertava o interesse de uma reduzida classe de pessoas, a dos
desportistas convictos, a segunda metade da década de 1920 revelava a grandiosa apropriação
do universo futebolístico em Belo Horizonte, com dezenas de milhares de indivíduos ligados
à rotina dos jogos e campeonatos ocorridos na cidade. Por toda a parte podia-se ouvir alguém
se declarando adepto de uma ou outra agremiação esportiva, notadamente dos clubes de
futebol. Tanta gente envolvida fazia crescer também os incidentes, um eufemismo muito
utilizado pela imprensa local para designar as brigas ou sururus, naquele instante algo
praticamente inerente às partidas. O aumento da paixão elevava a rivalidade, e por
conseqüência, os conflitos.

A inauguração do estádio Antônio Carlos, com a realização da partida entre o Atlético e o Corinthians, era de fato tão significativo para a cidade, que o próprio comércio local indicava, na sua postura, tal condição:

CASAS COMERCIAES QUE FECHAM HOJE - Para que os seus empregadospossam assistir ao grande embate entre o Athletico e o Corinthians Paulista, ficarãofechadas hoje as seguintes casas commerciaes da nossa praça: Casa Conto, CasaHermany, Joalheria Padua, Sapataria Central, Oliveira, Costa & Comp., JoalheriaDiamantina, Marcello de Oliveira & Souza, Casa Caldeira, Casa Machado Coelho,Casa Ferreira, Parc Royal, Casa Guanabara, Casa Para Todos, Casa Teixeira NevesFilho, Casa Antonio d’Almeida, Casa Crystal, Casa Selecta, Casa Oscar Marques,Casa Omega, A’ Sedan, Casa Saliba, Casa Royal Stores, A’ Auxiliadora e PapelariaBrasil.

       Poucas situações teriam força suficiente para paralisar boa parte do comércio. O
futebol e as suas representações simbólicas impactavam a cidade com uma intensidade não
percebida (ou não possível) em outras práticas sociais. A foto da inauguração do campo
atleticano (foto abaixo), diz muito do espaço ocupado pelo esporte bretão em Belo Horizonte,
naquele instante.


A inauguração hontem realizada, com o maior brilho e enthusiasmo, do grande eimponente “stadium” “Presidente Antonio Carlos”, do Club Athletico Mineiro, foium acontecimento que ficará memorável nos annaes desportivos do nosso Estado.Pouco antes das 15 horas, partiam do Palacio da Liberdade para alli os automoveisconduzindo o sr. presidente Antonio Carlos, acompanhado de sua filha LuizitaAndrada e do assistente militar da Presidencia, commandante Oscar Paschoal, e ossenhores dr. Francisco Campos, secretario do Interior; dr. Bias Fortes, secretario daSegurança e Assistencia Publica, e seu assistente militar, major J. Gabriel Marques;dr. Gudesteu Pires, secretario das Finanças; dr. Djalma Pinheiro Chagas, secretarioda Agricultura; dr. Christiano Machado, prefeito da Capital, e dr. Abílio Machado,director da Imprensa Official. No portão central do novo “stadium”, a directoria doAthletico Mineiro aguardava o chefe do governo, que foi conduzido, com seusauxiliares, ao camarote de honra, debaixo de um longo e demorado estuar depalmas e acclamações de mais de trinta mil pessoas, que enchiam todas asarchibancadas e se agglomeravam nas elevações vizinhas. O aspecto do “stadium”,occupado por uma multidão de espectadores, entre ao quaes se viam innumerassenhoras e senhorinhas do nosso escól social, era de empolgante effeito ecommunicativo enthusiasmo. [...]. Seguiu-se a inauguração do “ground” pelamadrinha do novo “stadium”, menina Luizita Andrada, filha do sr. presidenteAntonio Carlos, a qual procedeu ao baptismo do campo com “champagne”, deaccordo com as praxes sportivas, o que fez por entre palma e vivas da multidão.[...]. Desde que vimos acompanhando o desenvolvimento da cultura physica dosfilhos de nossa terra, sentimos que um verdadeiro deslumbramento, um impulsoestupendo de enthusiasmo domina e impera em todos os corações da gente mineira.Apreciado, a principio, por pequeno circulo de elementos da sociedade, cultivadopor reduzido grupo de adeptos, foi gigantesco e rapido o movimento progressivo dosport em Minas, movimento este que se operou em todas as classes sociaes,arrastando dezenas de milhares de pessoas aos campos da lucta, no anseio louvavelde applaudir e incitar os seus affeiçoados nos jogos sportivos. E a prova disso, deunoshontem o Club Athletico Mineiro, com o soberbo espectaculo, jamais visto emtodos os tempos em nossa Capital, da inauguração do seu excellente “stadium”,obra que attesta o esforço e o enthusiasmo dos pioneiros do athletismo. [...] E nãoforam só as 30.000 vozes da assistencia, que enchia as archibancadas athleticanas,que ovacionaram a turma alvi-negra, gloriosa de tão renhido prelio, mas toda aMinas Geraes, em todos os rincões do nosso sertão, em todo o paiz onde o mineirose encontra, vozes e palmas coroaram o esforço e o denodo dos “sportmen”bellorizontinos, que, numa arrancada magnifica souberam collocar o seu estadoelevado em que se encontram as suas co-irmãs da Federação. Minas está deparabéns!172

       Receber cerca de 30% da população da cidade em um único evento esportivo
mostrava a dimensão que o futebol tomara em Belo Horizonte, trazendo a reboque a
(re)construção de vivências que se situavam em sua órbita. Dentre elas, uma das mais
importantes residia no hábito de torcer, a esta altura algo já sedimentado na Capital mineira.

Torcer à noite já era possível, e as torres de iluminação representavam uma
conquista da modernidade a serviço do desenvolvimento do esporte. Se as torres projetavam
imensos fachos de luz sobre o campo, fazendo brilhar os olhares atônitos dos torcedores, elas
também permitiam, em jogos que ocorriam durante o dia, o crescimento da capacidade de
público, que se debruçava sobre a estrutura metálica em busca de um ângulo original, ou de
um espaço inexistente nas arquibancadas lotadas. A foto abaixo ilustrava a
inusitada apropriação das hastes de iluminação pela torcida do Atlético, demonstrando o seu
fervor pelo time.


      Embora fosse considerado um time de grande torcida na Capital, o América não
parecia se equiparar ao Palestra e ao Atlético quanto às demonstrações extremadas de paixão.
Os noticiários reservavam a estes clubes os comentários que continham um grande apelo
popular, e mais do que isto, com torcedores capazes de atos grandiosos pelo amor às cores do
seu pavilhão. A abertura do Atlético a “todas as classes sociais”, e a fervorosa “passione”
italiana davam uma peculiar característica a estes times. Começara ali a identificação destas
equipes como “clube de massa”, ou ainda, “clube do povo”. P. 106

     Os embates entre os clubes de desdobravam em demonstrações explícitas de
enfrentamento, e nem sempre entre as quatro linhas demarcatórias do campo de futebol. Um
caso que exprimiu a condição de pertencimento entre time, jogador e torcida foi a passagem
do goal-keeper palestrino Armando para os quadros do Athletico. Tal atitude causou uma
enorme celeuma entre as diretorias das equipes, e se estendeu para os domínios das torcidas
de ambos. Considerado como uma ofensa e uma traição, o comportamento do goleiro não era
algo tão incomum naquele período, e tomou tamanha proporção por ter ocorrido entre dois
clubes notadamente rivais e pela condição de ídolo que o goleiro atingira no Palestra. A briga
pelo “passe” de Armando foi a síntese da disputa e da rivalidade que Palestra e Atlético
forjavam, e representava a condição de paixão, status e pertencimento que o futebol alcançara
em Belo Horizonte. Os periódicos permitiam a compreensão do acontecimento, noticiando em
destaque os meandros do ocorrido.

      O fato desencadeador do imbróglio ocorreu na partida entre o Athletico e o
Tupinambás, de Juiz de Fora. Neste jogo, Armando, já vestindo as camisas do alvi-negro, é
hostilizado pelos palestrinos presentes ao estádio. A nota desportiva do jornal apontava que
“[...] Armando, o nosso keeper do preto e branco, recebendo a saudação da numerosa torcida
athleticana. A torcida do Palestra vaiando o maior keeper da cidade. Insultos dos dois lados e
uma porção de guardas-civis no meio”190. A necessidade de intervenção dos guardas-civis
mostrava bem a proporção que a situação tomara.
Em outro momento, o conflito mereceu uma descrição esmiuçada na seção
desportiva do Minas Geraes, que apontava os motivos e as causas do tamanho mal-estar que a
atitude do arqueiro do time palestrino provocara:

ARMANDO PERTENCERÁ SEMPRE AO PALESTRA – Armando é o maiorkeeper de Bello Horizonte. O mais corajoso. O mais moço e o mais perfeito jogadorda sua posição. Em 1929, Armando conquistou muitas glorias para o Palestra Italia.A maior foi o campeonato, que elle garantiu heroicamente, numa serie de defesasimpressionantes. Armando, justamente por isto, era um nome querido nos meiospalestrinos. Aconteceu, porém, esta coisa imprevista: Armando deixou aquelle clube entrou para o Athletico, declarando seu antigo desejo de inscrever-se pelo preto ebranco. E a sua transferencia para o Athletico parecia definitiva desde domingo,quando toda a torcida do Palestra vaiou o esplendido goal-keeper, publicamenteinsultado pelos antigos admiradores. Hostilizado pelos socios do Palestra,Armando acceitou deliberadamente a amizade e a admiração dos athleticanos. Epara regulamentar o seu acto, Armando passou a preferir o café Iris ao BarExcelsior, de accordo com os estatutos da Liga. Vaiado pelos palestrinos e vestindoa camisa do Athletico, parecia que o maior pegador de bolas da cidade haviarealizado o seu proposito. No entanto, a directoria do Palestra não pretende dar aArmando o passe, considerando que a vaia de domingo não exprime o seupensamento. A directoria, reconhecendo os serviços prestados por Armando, nãoquer que elle vá para o Athletico. Hontem constava até que o magnifico goalkeeper,antes de poder alistar-se legalmente ao seu novo club, terá um anno inteirode ferias, concedido pela directoria do Palestra. Isto prova que Armando continúaprestigiado e que a sua demissão não será concedida. As accusações feitas aocampeão de 1929 são, portanto, injustas, não havendo má vontade dos directoresdaquelle club em relação ao Athletico. O Palestra nega o passe a Armando, apenaspara conservar no seu team o brilhante jogador, ao qual quer reaffirmar a suaestima. É um assumpto que o nosso publico sportivo ainda não comprehendeu. Emqualquer occasião, no entanto, o Palestra daria o passe aos seus jogadores. Para-raioe Polenta, si estes tambem pretendessem passar para o Athletico. Como se vê,embora os associados do Palestra sejam inimigos de Armando, a directoriareconhece o valor do grande keeper mineiro, insistindo em conserval-o no seuprimeiro quadro.191

      O “caso Armando” revelava uma condição muito comum na época. Os jogadores
dos times eram, invariavelmente, também simpatizantes e torcedores dos mesmos. Embora o
profissionalismo, em 1933, venha alterar mais radicalmente tal postura, a mudança de um
clube para o outro já não era algo tão incomum, e não deixava de prenunciar uma forma de
“profissionalismo marrom”. Os motivos que promoviam a transferência para um outro time
estavam, via de regra, ligados à possibilidade de melhoria financeira, já que os principais
clubes, veladamente, remuneravam os seus principais jogadores.


      Assim, a proximidade do torcer com aspectos particularmente ligados à lógica da
modernidade, como a diversão espetacularizada, o consumo e a fundação de um espaço
público de catarse coletiva perpassaram como uma das mais significativas considerações a
serem demarcadas pela investigação.
Por outro lado, o nascimento de um “estado de espírito”, colocado pelo sentimento
de pertencimento do torcedor se revelou teimosamente inapreensível. Apenas nos foi possível
a apropriação dos indícios (e foram muitos), que conduziram os rumos da narrativa tecida pela
trama. Indícios estes que reforçam a importância do torcer como uma das mais significativas
práticas culturais do povo brasileiro, em geral, e do belohorizontino, especificamente.



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CONSIDERAÇÕES FINAIS


        Embora haja hoje uma tentativa dentro da poética cruzeirense de roubarem para si o título de "time do povo" baseando-se no argumento de serem um clube de colônia italiana, e que dessa colônia grande parte era formada por famílias pobres, encontramos estudos que complicam a retórica cruzeirense. Primeiramente, o Yale, fora formado em sua maioria por artesãos e operários da construção civil com o desejo de representação de sua colônia européia. Todavia o Palestra Italia, que décadas depois viria a ser o Cruzeiro, na realidade, foi uma agremiação proposta pela junção de alguns ex-membros do Yale com o apoio de famílias ricas e industriais italianas. Além disso o Società Sportiva Palestra Italia foi congregado para representação e união da colônia italiana e foi uma instituição expressamente fechada, não aceitavam pessoas que não fossem de descendência italiana até 1925 e somente em 1942 o time realmente decidiu (por imposição federal) deixar de ser um clube de identidade italiana e a tentar se tornar um clube popular. A partir daí o Palestra passou a se esforçar para construir uma imagem mais heterogênea, transformando-se em Cruzeiro, buscando um apelo nacionalista para seu emblema. Então o Cruzeiro tem em sua essência a representação por meio de uma narrativa que remete à ação dos próprios europeus como agentes modernizantes e reitera valores fundamentais da modernidade ocidental, como trabalho e perseverança, astúcia e racionalidade.
          Já o Atlético teve sua fundação proposta por jovens colegiais que matavam aula no Parque Municipal para sonhar com seu próprio time de futebol. Belo Horizonte era um arraial que buscava os ares da modernidade e o futebol era uma instigadora novidade esportiva que chegara da Europa e do Rio de Janeiro, e assim como toda forma de lazer e cultura, só cabia para a elite. O Atlético teve sua fundação proposta por jovens colegiais da classe média que matavam aula no Parque Municipal para sonhar com seu próprio time de futebol. O Atlético surge como um time de bairro. Com a ajuda da madrinha e padroeira do Atlético, Dona Alice Neves, mãe de um desses meninos, esse sonho dos jovens aos poucos tomou forma, e com muita dedicação dela e de outras mulheres que ela havia recrutado, esse time de futebol dos garotos foi aos poucos se tornando algo real. O Atlético foi um dos poucos times do mundo do futebol a depender de uma grande participação de mulheres em sua essência e a ter a primeira torcida organizada feminina do Brasil. Para que o time existisse, as pessoas do centro da cidade foram fazendo vaquinha, se esforçando, e o Atlético tinha o seu primeiro uniforme, e sua bola. Os quarteirões entorno do sobrado da rua Goiás, o centro da cidade, se movimentava, crescia em prol da ajuda de construir esse time, que sonhava em participar do novo e já tão querido futebol. Com o tempo, com a formação desse time de todos, os meninos começaram a vencer aqueles que tinham realmente força financeira na cidade, e os primeiros torcedores do Clube Atlético Mineiro se sentiram o próprio alicerce do clube, pois através da ajuda deles a instituição, o futebol, pôde existir. Desde sua formação, então, o Atlético contou com pessoas de todos os gêneros, etinias e classes sociais. Por não se fechar a um grupo ou modelo de torcedor como fizeram outros clubes, o Atlético era o time da maioria das pessoas da nova cidade de Belo Horizonte. Com o passar dos anos o Atlético estabeleceu seu lugar de time representante do povo de Minas Gerais, com exceção das elites, que abraçavam o América, e da colônia italiana, que abraçou o Palestra Itália ao longo das décadas de 20, 30 e 40. O Atlético foi o primeiro clube de Minas a ter em sua essência ampla participação de mulheres, de negros e da colônia árabe. O Atlético foi um clube que dependeu do carinho dos trabalhadores do centro da cidade, foi o primeiro time que soube se abrir para o mundo e foi generoso com os torcedores que bateram à sua porta. Com isso, ao longo da década de 30, 40 e 50 o Galo definitivamente era o clube mais popular de Minas Gerais, carregando a idéia da pluralidade, da miscigenação e do modo de se torcer como identidade de um povo sofredor, passional, e que se sente parte do clube.
De um modo enviesado essas duas imagens se apoiam na oposição entre modernidade e tradição para oferecer à comunidade duas alternativas de solução simbólica do conflito entre povo e as elites: a ideologia populista da mediação e do pacto social, investida do Atlético, e a ideologia liberal e racionalista da ascensão pelo trabalho, encarnada pelo Cruzeiro.

No fim das contas são duas formas diferentes de ser um time "popular", hoje em dia, obviamente ambos clubes permeiam todas as camadas da sociedade brasileira e podem se sentir verdadeiramente populares. Todavia em sua essência, e considerando (pelo menos) os cinquenta primeiros anos da história do futebol mineiro, o Atlético foi quem o povo de Minas Gerais adotou como sua paixão futebolística.




 





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro – 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

SANTANA, Jorge. Páginas heróicas, onde a imagem do Cruzeiro resplandece. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2003.

SILVA, Marcelino Rodrigues da. Mil e uma noites de futebol; o Brasil moderno de Mário Filho. Tese (Doutorado em Letras – Estudos Literários.), Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte, 2003.

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WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 200.