"O Atlético é o time das pessoas"
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Massa do Galo nos anos 50 ainda no antigo Antônio Carlos. Torcida de vanguarda. |
O que se passou na vida do Atlético até o clube completar seu cinquentenário, em 1958, deve sempre ser analisado com muito mais carinho e cuidado do que em qualquer outra época que se possa haver. Assim como para Freud, onde os primeiros anos de vida são definidores de várias questões do ser, de construção e de identidade, esses cinquenta primeiros anos do clube foram definidores da grandeza, do pioneirismo e da identidade de time do povo.
Em todo o Brasil, nas 5 primeiras décadas do século XX, surgiram e instauram-se, regionalmente, alguns clubes que foram, ao longo destes 50 anos, consagrando-se como maiores que os outros. E o fator básico e definidor de diferenciação destas grandezas foram as conquistas e claro, o tamanho da torcida. Foi aí que o Clube Atlético Mineiro, desde os anos anos 30 (e digo anos 30 porque nas duas primeiras décadas o futebol ainda estava se estruturando, em 1933 o futebol passou a ser oficialmente um esporte profissional ) se consagrou como o time representante do povo de Minas Gerais. Em uma sociedade brasileira ainda aristocrata, o futebol, em si, surgiu como uma opção dos marginalizados. Não era esporte para gente nobre, de classe alta. E o Atlético desde de sua fundação representou o sonho subversivo do povo mineiro. Com todas as dificuldades, aquele sonho de ter um time de futebol que representasse Minas Gerais era tratado por aqueles garotos quase como um sonho impossível. Porém o Galo foi abraçado pela população e se configurou como o time das multidões. O Atlético é pela sua essência o time do povo oprimido, do torcedor apaixonado, sonhador, fanático e completamente louco pelo clube. Em Minas Gerais, em questão de futebol e torcida, o Atlético foi pioneiro em tudo*. O Atlético foi o primeiro time do Brasil e certamente do mundo a ter uma torcida organizada feminina. Quem a criou foi essa mulher fantástica, que apoiou os jovens assim que tomou conhecimento da idéia e jamais permitiu que o sonho fosse posto de lado. Alice foi de casa em casa pedindo autorização aos pais para que suas filhas integrassem o grupo. Conseguiu reunir mais de 50 moças. Alice Neves era uma torcedora e tanto! As camisas e os calções usados pelos primeiros jogadores foram feitos em sua casa. Foi, sem dúvida, o primeiro exemplo de espírito atleticano da história.
Explica-se porque na década seguinte ao cinquentenário o Atlético colecionou erros terríveis. O país vivia tempos difíceis, eram os anos de chumbo da ditadura militar. Além disso, alguns presidentes do clube nesta época fizeram contratações de veteranos a preço de ouro. O Atlético foi se afundando em técnicos decadentes e uma dívida voluptuosa. Não é o caso de jogar a culpa nas costas deste ou daquele presidente pela situação dos anos 60. Mas todo um contexto e a sucessão de pequenas falhas e dificuldades tornou-se um fardo. E esse fardo chegou a ficar tão pesado para o alvinegro, por mais forte que ele fosse, a ponto de cometer o maior erro de sua história, quando o estádio de Lourdes - que deveria ter sido transformado em Patrimônio da Humanidade, apenas por ter sido o chão sagrado onde pisaram Mário de Castro, Guará, Zé do Monte, Murilo Silva, Kafunga, Mexicano e outros centenas de craques - teve de ser negociado para saldar dívidas. Segundo Ricardo Galuppo, escritor e grande historiador atleticano afirma: "quem mais sofreu quando anunciaram a venda foram Leiteiro e Zé das Camisas. Zelador do estádio desde longa data, Leiteiro se aposentou. Zé das Camisas foi em prantos rezar no gramado quando soube que teria que deixar o lugar onde estivera a maior parte da vida. Treinador dos quadros infantis, jardineiro, roupeiro, entre outras funções, Zé das Camisas tinha um zelo sagrado para com as coisas do Atlético. Zé das Camisas foi a última pessoa a deixar o velho estádio Antônio Carlos quando ele fora entregue para a prefeitura de Belo Horizonte "
Após a venda do estádio vieram anos conturbados. Bastava surgir um jovem talentoso como Buglê ou Buião para serem mal negociados. Talvez o clube não resistisse aos contratempos se não tivesse contado com o apoio espetacular da poderosa Força Atleticana de Ocupação, a FAO**. Quem deu esse apelido à Massa foi Fábio Fonseca, outra grande figura atleticana dessa época e que ajudou a segurar as pontas. Fábio Fonseca foi um dos dirigentes que mais encarnaram a imagem do atleticano apaixonado. Médico, ele havia enfrentado os nazistas nos campos de batalha da Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. Foi presidente do Atlético em 1962 e 1963 ( aposentou-se e saiu do cargo após o Golpe Militar). Fábio Fonseca sempre comparecia aos jogos com a camisa do Galo e calças brancas. Não aceitava que ninguém colocasse em dúvida seu amor pelo clube:
"Faço qualquer coisa pelo Altético. Meto o braço na cara de quem tentar passar o Atlético para trás. E topo mesmo qualquer parada. Se for preciso matar... Bom, de qualquer forma eu morro pelo Galo."
Não se pode falar de atleticanismo, e sobre personagens do folclore alvinegro sem falar de José Gomes Ribeiro, o "Sempre". Fizesse sol, fizesse chuva, ele estava no Atlético. A questão é que Sempre não era um funcionário do clube, mas um torcedor! Troncudo, de estatura mediana, Sempre impunha respeito pela força física e pelo vozeirão. Podia-se dizer que seu trabalho ali era apoiar o Atlético. Para ele, o Atlético valia qualquer sacrifício. No seu caso, isso não era apenas retórica. Quando Zé das Camisas precisava de ajuda para reformar o gramado, Sempre era o primeiro a se oferecer. Quando Leiteiro convocava voluntários para pintar as paredes, lá estava Sempre. Nunca cobrou pelos seus serviços; "Ele jamais perdeu um jogo do time", diz Ricardo Galuppo, "ele nunca vaiou um jogador do Atlético e não admitia que ninguém fizesse isso ". Sempre estava presente em quase todos os treinos do Atlético apoiando os jogadores. Nas arquibancadas do velho estádio Antônio Carlos, ou, no Independência, não gostava de sentar para ver o jogo. Caminhava pelas arquibancadas e - com seu vozeirão - passava instruções para os jogadores. Torcedor radical e boêmio inveterado, acabou levando cartão vermelho da mulher, que o pôs para fora de casa. A liberdade o tornou mais boêmio e mais atleticano. Seu estilo de torcer não se adaptou às grandes dimensões do Mineirão, o estádio inaugurado pelo Governo em 1965. Reclamava que ali, suas instruções não chegavam aos jogadores. Até sua morte em 1977, Sempre esteve firme nas arquibancadas.
Todo atleticano é um personagem histórico, e isso todo atleticano sabe. A questão é que, para entrar nos anais da história, para diferenciar-se e consagrar-se dentro da Massa, perante tantos e tantas ao longo da história da torcida, precisa-se muito mais do que sacrificar-se pelo Atlético. É preciso realmente viver e conseguir mudar as coisas por dentro do Clube. O futebol tem potencial para ser uma ferramenta revolucionária, e para isso acontecer é preciso que o povo se posicione. Nos estádios contemporâneos, por diversas proibições da polícia e outros órgãos, não se permite fazer as mesmas festas como outrora, tanto pela proibição de entrada das bandeiras individuais do torcedor comum, quanto pelo preço dos ingressos, que torna o estádio emburguesado e conservador. Mas ainda nos resta muita luta. O atleticano deve ser inteligente para saber analisar a questão em que o Atlético se passa. Mas antes de tudo, o que todo atleticano deve entender, é a essência da torcida do Galo, de saber apoiar e fazer a diferença como nenhuma outra. Lutar, lutar e lutar ao lado do Galo para que ele se mantenha no lugar que sempre deve estar, que é o lugar de clube do povo de Minas Gerais. E todo atleticano tem o potencial e o dever cívico de fazê-lo ser.
O Galo é um clube diferente dos demais por vários fatos que dizem respeito a mesma coisa: sua torcida. O que sempre se viveu dentro do Atlético foi uma vida de muito amor. Todos que estiveram na criação e construção do clube - contando com a sorte ou com azar, com boas ou más escolhas - o fizeram sempre com muito amor. O Atlético é um clube que fora criado pela e para a torcida - É essa loucura vanguardista dos jovens, é essa ousadia subversiva do povo que transformou o Altético no clube com a melhor torcida do Brasil*** - Não é atoa que em tempos de futebol moderno, onde os clubes se tornam empresas que o Atlético tenha ganho a alcunha de ser o time em que o jogador entra profissional e sai torcedor. O Galo é mesmo uma fábrica de paixão.
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* Os 50 primeiros anos do Atlético demarcaram seu pioneirismo dentro e fora de campo: em 1908, o Atlético foi o primeiro time do Brasil e certamente do mundo a ter uma torcida organizada feminina. Ainda em 1908 foi o primeiro time mineiro a trocar as antigas bolas de meia pelas bolas de couro. Seis anos mais tarde, conquistou o primeiro torneio de futebol realizado em Minas Gerais, a Taça Bueno Brandão. Em 1915, venceu o primeiro campeonato oficial de futebol do Estado, organizado pela Liga Mineira de Esportes Terrestres, atual Federação Mineira de Futebol (FMF). Em 1929, em nova página vanguardista, o Galo disputou o primeiro jogo internacional de uma equipe mineira, vencendo o então Campeão nacional Português. Em 1930, o Galo teve o primeiro jogador de fora do eixo Rio-São Paulo convocado para a Seleção Brasileira: o mestre Mário de Castro. Em 1937, o Atlético se sagrou Campeão dos Campeões do Brasil, na primeira competição interestadual profissional realizada no País. Em 1950, o Galo realizou inédita excursão vitoriosa pela Europa. Entre 2 de novembro e 7 de dezembro daquele ano, o time disputou dez partidas contra equipes da Alemanha, Áustria, Bélgica, Luxemburgo e França.
**A FAO (Força Atleticana de Ocupação) foi a primeira torcida organizada de Minas Gerais a levar seus instrumentos e bandeiras a um estádio nos moldes de hoje, em 1969.
***Em 2007 o Atlético foi o primeiro clube a ter alcançado a marca dos dez milhões de torcedores levados ao seu estádio na história dos Campeonatos Brasileiros (Entre 1971 e 2007). Na ocasião calculou-se que 12.350.287 pessoas já foram torcer pelo Galo na principal competição nacional.